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Nueva revista del Pacífico

versión impresa ISSN 0716-6346versión On-line ISSN 0719-5176

Nueva rev. Pac.  no.65 Valparaíso  2016

http://dx.doi.org/10.4067/S0719-51762016000200002 

MEMORIA ESCOLAR E RECEPÇÃO CRÍTICA DE JOÃO ANTÔNIO1

MEMORIA ESCOLAR Y RECEPCIÓN CRÍTICA DE JOÃO ANTÔNIO

SCHOLAR MEMORY IN THE CRITICAL RECEPTION OF JOÃO ANTÔNIO



Wagner Coriolano de Abreu*

*Doutor em Letras Bolsista PNPD - UCS/Uniritter coriolano3@gmail.com


Resumo:
O artigo apresenta uma recomposição da vida escolar do escritor João Antônio, período em que realiza os primeiros trabalhos literários e os publica no jornal Crisol. Igualmente, estabelece o itinerario poético tracado pelo escritor em entrevistas e no manifesto Corpo-a-corpo com a vida (1975), percorrendo o período entre a estreia com os contos de Malagueta, Perus e Bacanaço (1963) até os retratos literários reunidos em Dama do Encantado (1996). Por ultimo, segue trabalhos críticos produzidos em resenhas, artigos de jornal e ensaios acadêmicos, visando as linhas de interpretação aplicadas a obra ficcional.

Palavras-chave: Formação escolar, João Antônio, crítica literdria, narrativa brasileira.


Resumen:
El articulo presenta una recomposicion de la vida escolar del escritor João Antônio, período en que realiza los primeros trabajos literários y los publica en el periodico Crisol. Ademds, establece el itinerdrio poético trazado por el escritor en entrevista y en el manifiesto Corpo-a-corpo com a vida (1975), recorriendo el período entre la presentacion de los cuentos Malagueta, Perus e Bacanaço (1963) hasta los retratos literários reunidos en Dama do Encantado (1996). Por ultimo, sigue trabajos críticos producidos en resenas, articulos de periodicos y ensayos académicos, objetivando las lineas de interpretacion aplicadas a la obra ficcional.

Palabras clave: Formacion escolar, João Antônio, crítica literária, narrativa brasilera.


Abstract:
The article presents a reconstitution of João Antônio's school days, when he produces his first literary works and publish them in a newspaper called Crisol. It also determines the poetic itinerary draw by the writer in interviews and in the manifesto "Corpo a corpo com a vida" (1975), concerning the period in-between his first published book (Malagueta, Perus e Bacanaço, 1963) up to the literaty portraits assembled in Dama do Encantado (1996). Finally, the article follows critical works (from different perspectives) on João Antônio's opus, including reviews, articles and academic essays.

Keywords: Educational background, J. A., literary criticism, Brazilian narrative.


 

Introdução

O escritor João Antônio, em contos que examinam as camadas mais baixas da sociedade brasileira, atinge um patamar poucas vezes alcançado por outros ficcionistas de sua geração (Zilberman 34). A orientação geral dessa literatura relaciona-se diretamente com o percurso da formação do escritor, a partir do qual destacamos o encontro do menino com o livro de leitura, os primeiros exercícios de produção literária, o ingresso no sistema literário e a subsequente recepção crítica aos livros que reunem os contos e outros gêneros literários e jornalisticos. João Antônio Ferreira Filho, nascido em São Paulo, em 27 de janeiro de 1937, "faleceu em dia desconhecido do mes de outubro de 1996, no Rio de Janeiro" (Ornellas 146).

Através de leituras de material impresso, tracamos um eixo em torno da formação de João Antônio, dando ênfase a sua permanênciana escola, mais do que aos intervalos de mudança entre uma e outra instituição. Em seguida, ainda com apoio de fontes impressas, procuramos mapear a entrada para o sistema literário, históriando a estreia em livro e posteriores lançamentos. Por fim, realizamos a síntese de textos da crítica, entre diversos outros, em que os autores destacam o viés de interesse para nosso estudo.

Da formação de leitor aos primeiros trabalhos escritos

O pequeno leitor João Antônio, no início dos anos 40, contempla longamente os ceus que cobrem a casa de seus pais, então no bairro de Presidente Altino, em Osasco, região metropolitana de São Paulo, segundo soubera mais tarde por Irene Gomes, negra carioca, bonita, forte, nutrida, luminosa, sua mae: "pelo jeito como ela conta, eu ficava olhando aquele mistério todo, a majestade do nascimento da noite. Então, acho que ai me tornei um escritor" (Antônio, Patuleia 5). Era no tempo de seus 5 anos e anterior ao ingresso na escola, mas o menino antecipa a futura vocação de escritor, certamente fundada no interesse deste grupo famíliar e desejada como realização humana. Com sete anos completos, muda-se com a família para a Vila Pompéia, Rua Caiovas, atras do campo do Palmeiras.

João Antônio realiza o curso primário no Externato Henrique Dias (Magnoni 611), estabelecimento público que atendia a crianças pobres da Zona Oeste, principalmente dos arredores do Beco da Onça, onde "so havia gente desprofissionalizada ou de profissões muito humildes, como catadores de papel, sapateiros etc." (Steen 133). De qualquer forma, neste local querido de sua infância, o escritor vive de 1943 a 1947 e começa a namorar as palavras, "através da leitura de histórias em quadrinhos". O salto para o livro, em seguida, deu-se por meio da obra Esopo, o contador de histórias, escrita e ilustrada por Ofélia e Narbal Fontes, Editora Melhoramentos.

A fase do curso primário e ginasial - nosso ensino fundamental - do jovem transcorre sem muita notícia de estudos e descobertas literárias, até pelo menos os onze anos, época em que se aproxima da revista O Crisol, editado no bairro paulistano Moema, pelo gaúcho Homero Mazarem Brum, que publicava a produção escrita de crianças e premiava-as com livros (Oliveira D10). Começa a tomar conhecimento da literatura por meio desses livrinhos que ganha pelas dissertações, crônicas e pequenas biografias enviadas a revista. Aprende a consultar o dicionário. Coleciona figurinhas que saem junto ao Café Jardim, com as quais compõe uma espécie de livro: "Saíam álbuns e os garotos os enchiam com figurinhas tiradas do pó do café. O primeiro álbum que eu enchi era uma história chamada O homem das cavernas, escrita por Monteiro Lobato" (Steen 134).

Nesse período, passa de leitor de história ilustrada a leitura do texto literário, pois ganha das figurinhas do Café Jardim um prêmio em livro, pelo mérito de colecionador. É assim que lê uma adaptação do romance Os moedeiros falsos, de Andre Gide. Dessa primeira fase de formação, ele guardará o encanto mágico das palavras e a constante afetiva que povoa seus contos e seus escritos. A aventura literária em O Crisol certamente preparou-lhe o caminho para o interesse pela literatura e pelo ato de escrever. Depois de iniciar a dura experiência da luta pela sobrevivência - trabalhar de dia e estudar a noite - o jovem viaja de bicicleta no final de semana, ao distante bairro de Moema, a fim de manter o contato com a imprensa e conversar sobre questões literárias:

Nessa época, João Antônio passou a viver o duro cotidiano que milhares de adolescentes brasileiros enfrentam: trabalhar e estudar. Durante o dia era office-boy na multinacional Anderson Clayton e a noite continuava seus estudos no Colégio Campos Sales, na Lapa. Começa a se interessar pela literatura e a escrever. Aos sabados, vai de bicicleta até o distante bairro de Moema, na zona sul da capital, ao (sic) jornal O Crisol (Magnoni 612).

A incipiente produção literária de João Antônio, nos anos iniciais da década de 50, recebe o incremento do cinema e das novas experiências do mundo do trabalho. Além de cruzar a cidade durante o dia, perambulava a noite no verniz da madrugada, em bares de sinuca. Muito cedo, ele conheceu a zona do metetrício, as mulheres, a boemia, o jogo de sinuca, a malandragem. A respeito dessa materia-prima de futura prosa ficcional, o escritor informa que era jovem, via muito cinema e andava muito pela cidade de madrugada. Gostava muito de fazer o périplo dos bairros. Por isso o conto tem também esse tom de viagem dentro da noite, saindo da Lapa, dando a volta em toda a cidade, chegando a Pinheiros, passando pela Agua Branca, Barra Funda, Centro, la na Rua das Palmeiras, Santa Efigenia, por ai. (Oricchio 21).

A música é forte presença ao longo de toda sua trajetória de cidadão e artista, elemento constante da infância aos últimos dias, herança de família, de seu pai, eximio tocador de banjo e cavaquinho, de seu tio músico e das rodas de chorinho que se reuniam em sua casa. Por ocasião do lançamento de A dama do encantado (1996), declara a Claudio Cordovil que sua personalidade e poliedrica, pois apresenta vários interesses culturais, desde um simples retrato rarissimo de Pixinguinha tocando flauta, na parede de seu quarto de rapaz com 17 anos, a música de Noel Rosa, a literatura de Lima Barreto, aos problemas religiosos, a cultura negra e a leitura de clássicos contemporâneos. (Cordovil 8).

A primeira versão da reportagem sobre Aracy de Almeida, a dama do Encantado, sai na revista Realidade, de cuja redação participa nos anos 60, em São Paulo. Nos dois anos que antecedem essa experiência profissional, ainda no Rio, como jornalista, João Antônio convive com Cartola, "com a beleza e espontaneidade do morro, transpostas para a poesia do compositor" da Mangueira (Medina 273). A esse compositor, também dedica sua literatura em Zicartola e que tudo mais vá pro inferno! (1991). Em meados dos anos 80, a professora Cremilda Medina apresenta o escritor ao público português, destacando a literatura como elemento-chave para se compreender tanta diversidade de interesse:

Fez publicidade e jornalismo em grandes veículos, mas a voz da ficção sobrepôs e o autor se preparou, pela leitura, pela lucidez do aprendizado autodidata, para expressar conteudos populares. Quando lia em voz alta para o pai, ainda pequeno, aprendeu, junto com o choro, que as frases devem ter ritmo, melodia. Foi lendo clássicos e modernos da língua portuguesa e percebeu que cada escritor tinha seu ritmo. No seu interior, desenhavam-se palavras, amou-as desde cedo (273).

A obra de Noel Rosa, o mais refinado e popular músico brasileiro da primeira metade do século 20, rendeu a João Antônio alguns ensaios e uma edição comentada de composições, organizada no volume "Noel Rosa", da coleção Literatura Comentada (1982). Essa antologia é referência obrigatoria aos estudos da MPB, bem como registra a minuciosa pesquisa de leitor que realizou no âmbito da música.

A leitura do mundo, como condição para a leitura da palavra, relaciona-se diretamente com o João Antônio dos tempos da adolescência e das aventuras pelo jogo e pelas namoradas. Aos 16 anos, a polícia o prendeu por estar jogando sinuca, e seu pai teve que pagar multa elevada para solta-lo. Após o episódio, o pai mostra-se chateado e indignado, a ponto de reconhecer no filho os seus próprios vicios e até outros que não conhecia (Medina 273). Essas palavras, contudo, tiveram o efeito de formação positiva na vida de escritor, pois é uma constante em seu discurso a distinção ética. A aventura pelo jogo também lhe rendeu o conhecimento extremamente apurado do universo das relações humanas no bar de sinuca.

Entre as cartas que João Antônio envia a poetisa Ilka Brunhilde Laurito, as cartas de 13 de setembro e de 15 de setembro de 1960 registram a descrição detalhada do jogo da mesa verde e seus tacos. Nas cartas guardadas por Laurito, é impressionante a sutileza de detalhes com que o escritor expõe o contexto do jogo e, por outro lado, curioso como não escolhera a sinuca para tratar de sua poética, a exemplo da explicação no conto "Arte e afinação de chutar tampinhas" (27). A presença de elementos que indicam uma concepção poética em seu fazer literário tem a ver com a relação prolongada com o mundo das letras.

As andanças da adolescência preparam o material humano da prosa de ficção e das memórias. Essa vivência não podera ser divorciada da sua literatura. Os contos que escreve, e com que ganha alguns concursos, antes do primeiro livro, registram ainda a experiência com a caserna, com a redação profissional e com conhecimentos publicitários, elementos que retornam constantemente na obra ficcional. Sobre a passagem do curso de magistério a faculdade de jornalismo, o cronista Lourenco Diaféria da a seguinte notícia:

João Antônio foi cursar o ginásio no Colégio Campos Sales, deu uma trumbicada na matematica, tirou algumas notas altas e algumas notas baixas em latim; em português, nem era o melhor da classe. No mesmo colégio, na Lapa, concluiu o curso de magistério. Mas foi o curso da vida que lhe ensinou a afinada pericia de chutar tampinhas com a ginga que o consagra (61).

Em fins da década de 1950, João Antônio termina o curso de magistério e inicia o de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Concomitante aos estudos desenvolve atividade de redação na Agênciade Publicidade Petinatti, e também publica com regularidade seus textos no jornal O Tempo, alguns dos quais são posteriormente aproveitados na coletânea de contos Malagueta, Perus e Bacanaço (1963). A história deste livro de contos mostra uma lição maior de vida literária. Pouco tempo antes de publicar a reunião de contos, perde o unico original que tem do livro e outros objetos bastante importantes, como os livros que ganhara com o esforco de escrever para o pequeno jornal de Moema, no incendio da casa onde morava com a família. "Fiquei sem roupas, sem casa, sem livro. Naquela casa, naquele meu quarto, eu trazia guardado as coisas que me acompanhavam desde os 5 anos de idade" (Magnoni 613). Sem lenço nem documento, vê-se diante de uma tragédia, apenas com o desejo de reconstituir o trabalho literário.

Esboça-se nesse quadro um roteiro de cinema: uma personagem em desespero procura os conhecidos e amigos, retalhos de escritos enviados por meio de cartas, conversas ao telefone, memórias esparsas, com o propósito de reescrever a seleta de nove contos, ao mesmo tempo em que experimenta o deslocamento como situação nova de escritor. No depoimento a Magnoni, a página desta memoria: "Eu não escrevia em outro lugar que não fosse meu quarto, porque fora dele eu não sabia escrever. A vida foi me dando porradas, me dando, até que aprendi a escrever em qualquer canto. Sem precisar de casa ou de quarto" (613).

II Da publicação da obra a consagração de escritor

Com a publicação de Malagueta, Perus e Bacanaço, o escritor definitivamente alcança o reconhecimento público e recebe muitos convites de trabalho em revistas, jornais e editoras. Muda-se para o Rio de Janeiro e inicia carreira no jornalismo da grande imprensa. Abre-se, desse modo, a um campo novo de permanente atividade com a palavra e alcança a condição de profissional, sem deixar de considerar a diferença entre reporter e escritor: "Quando fui para o jornalismo eu ja escrevia, não aprendi a escrever em jornal, muito pelo contrario, é bom que se diga isso, eu desaprendi, perdi muito da minha pureza trabalhando em jornal" (Magnoni 615). Entretanto, começa na imprensa com disposição para o diálogo e para a comunicação com o público, sabendo que tem dominio da linguagem popular e condição de escrever bom texto para gente humilde e leitores de jornal.

Entre o livro de estreia e o segundo livro de contos, Leão-de-chácara (1975), João Antônio apura as idéias a respeito de estética e criação literária. Assim, elabora um documento híbrido, mistura dos gêneros jornalistico e poético, cujo fundamento remete a dicotomia entre o bem e o mal, que ele conhecia por meio da leitura de dois romancistas que exploraram tal concepção filosófica nietzscheana: Fiodor Dostoievski e Thomas Mann. De acordo com a leitura de "Corpo-a-corpo com a vida" (Antônio, Malhação 1975), o crítico José Castello sintetiza a experiência de João Antônio, quando afirma que

ele desejava uma literatura que aderisse a vida e que, por mais bem-sucedida que fosse, não excluísse o reconhecimento de que é sempre menos importante que ela. Não se interessava pela busca do texto perfeito, chegando, ao contrario, a desconfiar daqueles que dele se aproximavam, ja que não lhe pareciam adequados para competir com a realidade, que, a seu ver, era sempre dada a desvios, dejetos e imundicies (46).

O ano de 1976 representa um momento fértil na carreira literária do escritor, sobretudo por lançar duas novas reuniões de textos, mas também pelas reedições dos primeiros livros. O jornalista Duilio Gomes denomina essa fase como o "fenômeno João Antônio" (2). Enquanto Malhação do Judas Carioca (1975) e Casa de Loucos (1976) agitam as livrarias e os leitores, com temas relacionados a vida nacional, música, cidade e atualidades do contexto da cidade, na cabeca do escritor fervilham os retratos de sua infância, no Beco da Onça, e da vida de morador no bairro carioca Copacabana.

As fontes diversas de leitura, condizentes com a versatilidade de jornalista, misturadas com vigorosa memoria afetiva, fornecem material para sua "máquina literária", bem como condições para que continue viciado em palavras e obstinado quanto a linguagem das classes populares. Em Lambões de cagarola (1977) João Antônio busca a fonte do relato popular de Getulio Vargas e procura a opinião de leitura do povo do Beco da Onça. Em depoimento ao jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, no mesmo ano da publicação, o escritor informa que

acabado o texto, aparadas as derrapagens de forma e banidos alguns desajustes de minha visão getuliana - só a do povo do Beco da Onça me interessou - insisti em sujeitar os originais a homens que poderiam, com maior categoria vivencial, humana e intelectual que eu, opinar sobre a passagem do homem de São Borja nos anos de 43 a 54 (Antônio, Correio 10).

Em Copacabana (1978), o escritor capta as ruínas que a sociedade paga para não ver, reconstituindo por escrito a fotografia da diversidade humana e das contradições que mostram a decadência do sistema oficial, "aquelas ruínas da metafisica em plena Copacabana, convivendo com as ruínas da Galeria Alaska", conforme observa João Gilberto Noll, em correio eletronico após conversa sobre o contista de Galeria Alaska. O escritor Sérgio Sant'Anna, na reedição de Copacabana apresenta a obra nos seguintes termos: "esse livro enfoca aquele que, por seus contrastes, talvez seja o mais interessante dos bairros cariocas. Um bairro habitado por décadas pelo próprio escritor, paulista que adquiriu sua cidadania carioca e copacabanense por meio da literatura" (170).

Se a publicação de livros, a partir do final dos anos 1970, se torna mais espaçada, em relação a ótima primeira década de presença editorial, então e o período em que o escritor percorre o pais em comunicação com a juventude estudantil e os demais leitores de todos os cantos do Brasil. É assim que ele coloca sua indignação para fora, por meio da crítica perspicaz sobre os males da nossa civilização. Nesse sentido, revela-se um atento leitor de Darcy Ribeiro e de seu projeto para o povo brasileiro. A prosa de João Antônio mistura a realidade da vida cotidiana brasileira com uma ternura antiga, de saudade dos tempos da infância e mocidade, apesar de suas personagens da malandragem. Em junho de 1996, ao lhe indagarem se sentia saudade dos anos 70, declara que as sinucas da Lapa ainda existiam com os mesmos tipos retratados em seu primeiro livro, apesar de não existir mais malandragem, pois "o que existe e crime, contravenção, violência e drogas" (Cordovil 8). A arte do malandro que trata o fregues com açúcar deu lugar ao tipo musculoso que emprega forca para resolver os conflitos tipicos da vida noturna, conforme se le na conversa do porteiro Pirraça, no conto "Leão-de-chácara" (Antônio, Leão 15).

III A leitura da obra pela crítica

Embora registre que não aprendeu a escrever com o jornalismo (Magnoni 615), a imprensa marca sua ficção na carne e também consolida sua recepção junto aos leitores. Os suplementos literários e a imprensa nanica (Freitas Filho 54) puseram em movimento a "máquina literária" deste escritor do eixo Rio-São Paulo. Desde a estreia em livro, João Antônio e recebido pela crítica jornalistica e, em seguida, seus contos tornam-se objeto de estudos acadêmicos, devido a relevância de sua expressão literária e a promoção do autor, através de conversas com estudantes de universidades brasileiras, nos anos 70, e encontros internacionais, nos anos 80.

A crítica a obra de João Antônio reune a escrita de profissionais, cujos textos acrescentam uma análise teorica ao produto literário. A fim de destacar os problemas que inquietaram o pensamento do escritor, selecionamos da fortuna crítica os ensaios que examinam a prosa ficcional sob diversas perspectivas e enfoques, em face das tendencias de leitura da obra.

A crítica Nevinha Pinheiro (1977) publica um artigo no suplemento "Caderno de Sabado", do jornal Correio do Povo, em que examina o conto "Paulinho Perna Torta", sob o viés da idéia de bem e mal. É a história de Paulinho e seu mundo marginal. Observa que a narrativa mistura duas versões do retrato da personagem: a do próprio narrador e a da imprensa, que se constrói por meio do ressentimento da infância, gasta em vida de adulto, e do reconhecimento de um mestre, que lhe ensina a malandragem da vida e arranja-lhe uma residênciana zona. Na adolescência, Paulinho recebe do mestre a advertência de como se relacionar com uma mulher e a descoberta da vida interior através de Zião da Gameleira.

O autorretrato mostra que as maldades dos homens e do mundo marcam sua vida. Contudo, o ser poético que ha nele revela as belezas e o prazer da vida: "numa inversão de valores, bastante ironica, a zona e o local onde Paulinho chega a ter uma vida boa, em confronto com a vida anterior aquela" (Pinheiro 6). A linguagem de João Antônio apresenta bastante riqueza na expressão do mundo marginal, mas a forca do vazio, o problema de enfrentar a conversa consigo mesmo e a busca da verdade levam-no a idéias de ressentimento, verdade e vazio por dentro.

O brasilianista Malcolm Silverman (1981) traca um amplo e minucioso painel dos sete primeiros livros de João Antônio, os quais englobam textos de ficção e não ficção, de acordo com a proposta de seu projeto de estudos da moderna ficção brasileira. Passo a passo, o ensaista aponta os elementos que marcam a prosa do escritor "das classes baixas urbanas" (Silverman 62), seguindo a risca um roteiro de questões da ars poética: cenário, ambiente, tempo, espaço, ponto de vista, personagem e tematica. Com isso, oferece ao leitor uma trajetória através dos textos, citados copiosamente, e um ponto de partida para a ida aos escritos de João Antônio. Vale a pena destacar que essas extensas anotações de leitura correspondem a menos da metade da obra literária do escritor. Contudo, nelas ja se apresenta a "mistura de desespero e resignação (que) compõe o fatalismo particularmente comum as pecas ficcionais de João Antônio" (70).

O professor e crítico Jesus Antônio Durigan (1983) aponta a falta de análise da ficção de João Antônio, devido a ênfase na exuberancia da linguagem. Durigan afirma que a ficção do contista desvenda e sustenta as contradições que tecem de maneira dicotomica a realidade significativa. Outro aspecto que o crítico observa refere-se a aprendizagem em contos publicados no período entre 1963 e 1982. O malandro empreende seu saber específico de conquistar o poder do conhecimento e da posse do dinheiro. Tal perspectiva de análise sustenta-se na dialética da malandragem de Antônio Cândido, cuja visão destaca o conflito de identidade do malandro perante as normas burguesas. A dupla face do aprendizado aparece na posição do narrador e na trajetória das personagens. O narrador se garante através da utilização de frases, ditos e pensamentos estereotipados. O processo aproxima João Antônio de outros escritores brasileiros, como, por exemplo, Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Dalton Trevisan e Plinio Marcos.

Professor e pesquisador holandes, Ruud Ploegmakers (1985) aproveita a expressão "frescuras do coração", da epigrafe de "Paulinho Perna Torta", e apresenta um estudo sobre a melancolia nos contos de Malagueta, Perus e Bacanaço e Leão-de-chácara. A escolha do crítico recai sobre o conto "Afinação da arte de chutar tampinhas", pois o considera como chave da poética do escritor paulistano. O artigo apresenta a especificidade da literatura nesses primeiros contos, por meio da retomada de premissas da crítica e da análise do conto.

Antônio Hohlfeldt (1985) seleciona e escreve uma introdução para a série de melhores contos de João Antônio. Com o titulo "Pra la de Bagda", realiza uma seleção que da mostra da produção diversificada do escritor paulistano, mescla de ficção e jornalismo. Apresenta, em seguida, uma notícia do andamento de trabalhos de critica a obra do escritor e confirma a opinião de Fausto Cunha, segundo a qual João Antônio aparece em 1970 como uma revelação e contribuição a nossa literatura (Hohlfeldt 6). Examina os textos pelo vies da crítica a marginalização e aos problemas decorrentes da economia politica, sob o impacto da urbanização desenfreada. Assim, aponta a leitura da obra com o conceito de lumpemproletariado, cujo estudo ainda carece de maior atenção no Brasil. Na ultima parte do artigo, retoma as questões sobre o nivel textual do escritor, quando anota que ha nesta literatura uma oralidade essencial ao lidar com as personagens e tematicas do universo popular urbano.

Alfredo Bosi escreve a introdução aos contos de Abraçado ao meu rancor (1986). Tanto o crítico como o escritor procede da região operaria da cidade de São Paulo e têm alguma aversão aos ouropeis e idolos da inteligênciaburguesa. Bosi reconhece que seria impossivel passar incolume as marcas desse banho cultural. Assim, a denominação "marginal" torna-se fonte de equívoco, em relação ao escritor João Antônio. Na sociedade capitalista, não se pode dizer inteiramente a margem aquele que teve sua obra publicada, em circulação no mercado cultural. O leitor, contudo, não deixa de constatar o estilo original mais voltado para "a margem que para o centro da sociedade", segundo Bosi (239).

A análise de Bosi centra-se na boemia do narrador do conto homônimo, por meio do qual explora a situação de fronteira entre duas cidades, Rio de Janeiro e São Paulo. A personagem retorna a capital paulista, palco de sua adolescência, e sente o vazio do presente e a falta de sentido de seu passado, ao não encontrar na cidade as antigas memórias de ruas e de pessoas: "Perderam-se os nomes, e a anonimia" (240). Ela lamenta a perda das referências da vida popular e da boemia, devido a passagem do tempo. Todavia, o autor compensa a situação através de cenas que evidenciam a grandeza do jogo e da arte, como uma partida de sinuca de doze horas e uma sinfonia de latas de graxa na batida de Germano Matias. A sinuca revela a destreza do homem que defende a vida dia após dia.

A andança da personagem rompe com o ritmo burocratico do trabalho na cidade. Assim, ao contrariar a fixidez dos horarios e dos compromissos, por meio do distanciamento da realidade, proporciona ao leitor o reconhecimento das mudanças nos costumes e alerta-o para o perigo de perder-se na onda de consumo. Bosi aproxima João Antônio e Lima Barreto pela crítica que fazem ao vazio da sociedade movida pela propaganda, embora aponte a diferenca de uma época e outra: "a hipocrisia a meias de ontem virou despudor de hoje; e se as vinhetas florais de Art Nouveau sumiram, o papel macio de cetim brilhoso ficou e até encorpou nos folhetos de luxo onde se faz a publicidade da nova São Paulo" (241). Esses escritores procurariam desmontar o aparelho de manipular signos, com o propósito de combater o exibicionismo e o culto das aparencias.

A consciência do narrador esta dividida frente a exigências de público e da ocasião. Em sentido estrito, ele esta confuso acerca dos sentimentos em face da pobreza. Na viagem ao subúrbio, revê as mazelas do lugar, o qual se parece sempre com a desolação e a esqualidez. Essa visão decorre de sua vida em constante deslocamento, da consciência da separação que lhe dói acima da medida.

A pesquisa de Vânia Maria Resende, sobre a problemática da presença de meninos na literatura brasileira, entrelaca três narrativas de João Antônio, cujas personagens são garotos ainda imaturos quanto ao submundo circundante. A personagem Meninão do Caixote (Antônio, Malagueta 81), no conto homônimo,, entra para o jogo da sinuca quando se separa do amigo Duda, na mudança de bairro de sua família. O jogo ludico da vida, expresso através dos brinquedos que compõem o relato de seu cotidiano (carrinho de rolimã, bola de futebol e botão de mesa), aparece transportado para a alegria do encontro com o taco e as bolas de sinuca, assim como no ensinamento de Vitorino, jogador veterano e eximio, que o inicia nos mistérios da sinuca. O menino sobe no caixote para realizar jogadas, ganha experiência e cresce no jogo, mas não deixa a infantilidade. Até que, certo dia, regressa com a mae para casa, abandonando o salão de bilhar.

O garoto de dez anos, protagonista no conto "Frio" (Antônio, Malagueta 59), mora e trabalha com o malandro Paraná, e passa alguns momentos na companhia da menina Lucia, menor do que ele, que brinca de velocipede na calcada, perto de seu paradeiro. Ele faz entrega de um embrulho secreto, indice de alguma contravenção, pondo em risco a propria liberdade. Em Lambões de cagarola (Antônio 1977), o cotidiano da meninada negra do Beco da Onça e revelado como reserva de ludicidade, onde as crianças margeiam a promiscuidade e os vicios, no risco de um futuro marginalizado e no baixo da sociedade. Resende afirma que este escrito "nos faz refletir sobre as condições especificas que suportam a trajetória de meninos brasileiros, de uma classe desfavorecida, vitima do sistema politico e economico que discrimina, condutor da nossa história e demarcador de prejuízos mais gritantes em certas fases" (228).

O crítico José Paulo Paes reune ensaios que publicara anteriormente em revistas e periodicos, entre os quais se encontra "Ilustração e defesa do rancor", escrito a partir da leitura dos dez contos reunidos em Abraçado ao meu rancor. No referido ensaio, Paes tece as linhas gerais da prosa de João Antônio para, em seguida, centrar sua análise no conto homônimo. De imediato, estabelece distinção entre texto e conto, afirmando que João Antônio extrapola o gênero da literatura, na mistura de ficção e documento. Ressalta a discussão que a personagem trava a respeito da complicada identidade de um escritor em face de exigências do mercado de escribas, que escrevem vendidos por interesses monetarios: "forcejando por aparar as arestas da consciência crítica nacional e tornar as espinhas mais maleaveis do que nunca as intimidações do poder" (Paes 115).

Antes de examinar o olhar crítico do narrador, Paes mostra que João Antônio teve antecedentes na escolha do rancor como materia de literatura. A escolha do rancor recai na provocativa tirada espirituosa de Gide: os bons sentimentos so produziram ma literatura. A crítica corrosiva da degradação da velha cidade - encoberta pelas novas invenções do apelo publicitário - remete ao poeta frances Francois Villon. A crítica de José Paulo Paes prepara o leitor para que possa degustar a grandeza do conto pela riqueza das opções estéticas do escritor. O caráter de desabafo presente no texto tem a ver com a estratégia narrativa, que procura neutralizar os conflitos decorrentes da culpa: "Se o escriba cuja culpa é tematizada nesse texto traiu a sua gente 'feia, caquerada, acaipirada' por culpa do apego aos valores cosmetizados da "classe mérdea", não a traiu o escritor que ora se abraça lucidamente ao rancor para poder tematizar o seu alter ego e, mais do que tematiza-lo, anatematizá-lo" (114).

A perspectiva de Paes fixa para João Antônio um lugar entre os mestres da literatura universal, cuja produção literária esteve a serviço da representação do povo de baixo, e dos mestres da representação do cotidiano brasileiro, seja na prosa, com Antônio de Alcantara Machado, seja no verso musical, com Adoniran Barbosa, nome artistico de João Rubinato, ambos a serviço das camadas pobres da grande metropole. Em seguida, Edison Luiz Lombardo publica um artigo sobre a questão da malandragem no conto "Leão-de-chácara". A análise apresentada centra-se na figura de Jaime, o leão-de-chácara, do conto homônimo, de João Antônio, que trabalha na noite da zona sul do Rio e tem mulher e filhos. Conhecido como Pirraça, o leão-de-chácara narra as desventuras de seu oficio de porteiro de boate frente aos novos tempos, que substituiram o açúcar da palavra pela forca da arma. Mudaram-se as leis da sociedade, não poderiam permanecer intactas as leis do submundo. E justamente nessa questão que pretende mexer o autor do artigo. A partir da revisão das marcas da constituição do mito, segundo Roland Barthes, bem como da "dialética da malandragem", de Antônio Cândido, Lombardo mostra através de fragmentos do conto de João Antônio como a narrativa ficcional consegue desenhar a situação paradoxal do malandro. Na sua leitura, o dilema de Antônio Cândido se traduz em: "o malandro vive em conflito com as normas burguesas, embora atue junto aos burgueses" (214).

A explicação plausivel corre por conta da oportunidade de acesso a educação escolar, embora a narrativa alargue o horizonte da mesma, visto que o porteiro e de fino trato e consciente acerca da decomposição do tecido social. Com a omissão da história e a identificação das classes, o contista compõe um balanço da história da malandragem, cujo saldo e mais promissor do que elogioso.

Em 1994, Julia Marchetti Polinésio traca um panorama dos contos brasileiros e italianos que exploram a questão das classes sociais subalternas. João Antônio comparece neste estudo com a narrativa "Malagueta, Perus e Bacanaço", no capitulo sobre o conto socio-documental. "Malagueta, Perus e Bacanaço" corresponde a noção de conto socio-documental, bem como apresenta os ingredientes do picaro, que recorre a astucia e ao roubo para sobreviver. Polinésio reconhece no conto de João Antônio o traco documental, destacando a dicotomia entre malandro e otário (62). Contudo, por meio da leitura esquematizada da estrutura da narrativa, identifica as contradições no discurso das personagens, aponta para o subjetivismo inerente ao malandro e sua auto-piedade, e para a insuficiênciado padrão social estabelecido que favorece o otário.

A parte a moldura de narrativa picaresca, Polinésio reconstitui o conto através de síntese que destaca, na circularidade do enredo, o paradoxo da regra dos malandros: as três personagens são logradas, ao final da narrativa, pelo fato de que o mais jovem não pode denunciar o parceiro recem-chegado, com balanço de otário, mas que na verdade é um malandro disfarçado. A urdidura do conto ainda revela outro aspecto da arte de João Antônio, que se torna fundamental perante uma leitura dialética do mito da malandragem. E o narrar malandro, ou seja, o procedimento do narrador que passa pelo mesmo processo e aprendizado de suas personagens.

Assim, o escritor recorre, por exemplo, a retórica da enumeração, a fim de pôr ênfase no caráter ficcional de tema fortemente marcado pelo socio-documental. A arte de João capta, por meio do recurso retorico, "o cotidiano da malandragem" em toda sua verdade, "visto subjetivamente, sim, mas com a subjetividade dos personagens e não do narrador" (Polinésio 149). Ao encerrar a voz narrativa ao lado das camadas subalternas, a autora remete a ficção de João Antônio ao estatuto de escritor dos marginais, justamente a tendênciaclassificatoria contra a qual o escritor resiste: "as vezes eu fico meio chateado com esse clichê de escritor dos marginais" (Oricchio 21).

Em número especial da revista Remate de Males, por ocasião dos três anos da morte de João Antônio, Antônio Cândido (1999) afirma que, nas escolas de antigamente, a arte de escrever encontrava nas aulas de língua portuguesa razão de ser em exercícios de descrição e posterior correção do professor, cuja tarefa consistia em fazer longos comentarios a caneta vermelha. As vezes, o efeito não correspondia ao esperado. O exemplo classico é o caso de Paulo Honorio, personagem de Graciliano Ramos. Outro ponto de vista a respeito dessa arte dificil e o do escritor O. Henry, que recomenda um exercicio semelhante, mas condiciona o vir a ser escritor ao bom resultado da tarefa. Na primeira coletânea de contos de João Antônio, Cândido menciona a acertada estratégia do escritor quanto a aproximação com o leitor. A escrita dos contos afasta-se de sentimentalismos, espécie de neutralidade estrategica, e longe de ser a mera incorporação da linguagem falada, "os contos são escritos numa prosa dura". Cândido observa que é interessante verificar como na prosa ficcional de João Antônio os valores da oralidade (requeridos pelos assuntos) são transmudados em estilo, inclusive gracas a uma parcimônia seletiva por vezes proxima da elipse, denotando consciência das possibilidades que o implicito possui para dar ao explicito todo o seu vigor humano e artistico (85).

Nesse sentido, a presença de Lima Barreto, a quem João Antônio dedicou o livro, se verifica no aspecto da simplicidade da escrita, embora gramaticalmente correta, afrontando o ritmo convencional, ao inserir no texto a trepidação das expressões populares. Em especial, no ultimo conto da coletânea, atinge a magia de envolver o leitor na situação da malandragem, por meio de um cenário de iluminação soturna das ruas, rumor de bondes, burburinho das mesas de sinuca, movimentação no espaço e os macetes da lei de sobrevivência no submundo marcado pelos vicios e malandragem. Essa lei espuria, segundo Cândido, é "do mais apto em sinuca, em torno do qual se desenham uma técnica, uma etica e até uma estética, formando um modo de existir que é principalmente um modo de subsistir" (87).

A aproximação entre narrador e personagens sobreleva-se no conto, justamente pela linguagem culta que capta a realidade brutal dos excluidos, como se a distancia existente entre as classes, através da transfiguração criadora, houvesse deixado de existir e, com isso, a voz dos deserdados passasse a condição de língua geral dos homens. Através da estilização alcancada pelo escritor, "o jogo triste da vida" alcança um universo mais amplo de leitores.

Após situar João Antônio no quadro de certa tradição literária, Berthold Zilly recupera a história do picaro, a fim de referir a presença da narrativa malandra na escritura de autores brasileiros. A profusão de malandros como protagonistas em narrativas diminui as fronteiras com outras expressões culturais, como, por exemplo, a música e o cinema. No caso da música, a aproximação se torna relevante para a compreensão da obra de João Antônio, dado que toma o ritmo das palavras e das construções sintáticas como se fosse a criação musical, influenciado que foi pelos músicos de sua família e das rodas de choro e de samba populares.

Da digressão acerca do malandro, Zilly poe em destaque o sentido de personagem oriunda das classes subalternas, estrito senso, e sujeito que conhece a arte de viver, dita regras paralelas as regras estabelecidas da sociedade. Propõe que o estudo do malandro em João Antônio "pode ser uma chave para interpretar a sua obra e a sua posição, com relação as vertentes seria, lirica e comica da cultura brasileira" (182). O caráter documentário do conto presta-se ao trabalho de desconstrução do mito da malandragem, quando aponta a impossibilidade de sobrevivência do malandro de outrora. Baseado em declarações do escritor, Zilly anota que

a malandragem nos seus contos não é apenas uma necessidade socioeconomica dos personagens, não é apenas picardia na luta pela sobrevivência num mercado de trabalho retraido, é também uma atração, quase uma pequena utopia, independentemente da racionalidade prática, com aspectos emocionais e quase esteticos, é uma arte de viver em condições adversas (183).

A percepção do malandro em suas contradições tem a ver com o caráter autobiográfico ou da subjetividade da prosa de João Antônio, visto que o escritor coloca-se como crítico em trânsito, junto aos desvalidos, percorrendo as bordas da sociedade burguesa e do submundo circundante. Na leitura que faz do conto da vida dos três malandros da noite paulistana, destaca os espaços da malandragem, das luzes da noite, da briga entre os malandros, da exploração da mulher e maus tratos, origem da expressão "mulher de malandro", bem como apresenta a figura do otário, que as vezes aparece na roda dos malandros: "O que leva volta e meia os otários para as rodas dos malandros e uma certa inveja, uma certa nostalgia, o latente desejo de também serem malandros de vez em quando, apesar do perigo de ser burlado e explorado pelos malandros de verdade" (189).

A malandragem de João Antônio é mais cruel e mais dura, trata-se de homens de negócios que pouco se aproximam do malandro do samba e do romance malandro. E possivel que esse efeito de sua prosa se relacione com a cronica ou o conto, gêneros que exigem concisão e objetividade, mesmo que, por outro lado, não permitam visão totalizadora acerca da condição humana ou da sociedade.

A respeito da literatura de João Antônio, Zilly sugere ainda que através do malandro o escritor estaria refletindo a identidade da história do Brasil. A reconstrução que promove em seus contos nada mais é do que a tentativa de compreender o Brasil das grandes transformações, de buscar a permanênciade algo que ja não se ve nas cidades e outrora marcava a alegria da vida. Com solida formação geral, João Antônio gostaria de ter tido a malemolênciados malandros, "de não pertencer realmente a nenhuma classe social" (193), mas transitar do baixo da sociedade ao meio intelectual de classe media, sem sentir-se acanhado.

Por outro lado, Tania Celestino Macedo propõe uma leitura do mundo dos trabalhadores, da cidade de São Paulo, a partir da análise do conto "Malagueta Perus e Bacanaço". A vida desses trabalhadores se passa na cidade moderna, cuja falta de unidade e fragmentação os isola e promove a destruição da sociabilidade. Nesse sentido, a denuncia da desumanização do trabalhador urbano aparece no projeto de escrita de João Antônio. Conforme Macedo, suas personagens estão "em uma busca incessante de algo ou de alguem que lhes permita vislumbrar um futuro ou um sentido em sua travessia, desvelam a violência e a solidão da cidade" (41).

A trajetória de três malandros pelos bairros da cidade - a procura de jogo e otários com os quais possam arranjar algum dinheiro - revela o mundo do trabalho aviltado, daqueles que estão sob a ordem do capitalismo. As condições do trabalho assalariado massacram o sujeito com carencia, instabilidade e solidão (43). O malandro, por sua vez, não aceita as condições impostas, seu olhar recai sobre os trabalhadores com desdem e acidez, classificando-os de trouxas, por estarem apertados na afobação das ruas. No entanto, uns e outros se embalam pelo sonho de ascensão social.

O encontro das aspirações de malandros e otários acontece em torno da mesa de pano verde, no jogo da sinuca, ou melhor, no jogo da vida, metafora que fala da luta pela sobrevivência e pelo dinheiro depositado na caçapa, no início do jogo, como ingresso na partida. Na lei do malandro, não se perde para otário ou se torna alcaguete de outro malandro. Por isso, as três personagens jogam em parceria, até que alguem desconfie. Contudo, a artimanha da união dos desvalidos cai por terra, quando o destino os coloca frente a outro malandro disfarçado, que lhes leva o magro recurso. Então, pelas tabelas, o leitor descobre o jogo da vida como memoria das "relações reificadas, que comandam nossa sociedade" (46), com as quais so conseguimos lidar através da experiência do outro.

Em 2001, Jane Christina Pereira realiza por meio de pesquisa no Arquivo João Antônio a catalogação da crítica de jornal, o que resultou na dissertação de mestrado "Estudo crítico da bibliografia sobre João Antônio: 1963 - 1976", defendida na UNESP/Assis, sob a orientação de Ana Maria Domingues de Oliveira. Em 2003, as duas pesquisadoras propõem uma introdução a estética popular de João Antônio, a partir da análise dos três primeiros livros, em que enfatizam a escolha do autor pela sociedade dos desvalidos e pelo ritmo textual (Oliveira, Pereira 143). O escritor ve o mundo sob o ponto de vista de quem esta em posição social inferior, conforme ilustra uma cena do conto "Frio", na qual o menino preto e o malandro Paraná reunem-se para comer pizza e conversar, no abrigo onde moram. Desse modo, a linguagem do malandro rebatiza o mundo, visto que "o sentido muda para quem ve de baixo para cima, exigindo um vocabulário novo, uma linguagem nova" (145). A prosa ritmica de João Antônio revela a assimilação do "coloquial estatuto estetico", de modo que as referidas autoras falam em estética malandra quando examinam a presença da oralidade e incorporação intencional de vicios de linguagem: O autor recria em suas obras um mundo real, que estimula a estética "das coisas como elas são" (146).

O mundo da malandragem também é regido por exploração e competição como no mundo da sociedade burguesa. A estética malandra, nesse sentido, segue os ensinamentos da mimese e do lirismo. Esses elementos aparecem, por exemplo, quando representa uma faceta da capital paulista e fluminense com poesia que valoriza o aspecto humano de seres que parecem desumanos (147). O narrador, na ficção de João Antônio, fala em tom de canto de uma realidade brasileira convencionada, a qual tenta misturar na ficção.

Ana Maria D. Oliveira (2006) observa que a prosa narrativa de João Antônio tem sido associada a vertente de literatura realista e/ou naturalista. Contudo, não se trata de mera transposição da fala das personagens, que vivem a margem da sociedade, mas de processo de elaboração estética refinado, como se le no paragrafo inicial do conto "Meninão do Caixote", com suas aliterações, ressonancias e alternâncias tônicas "que dão ao texto uma musicalidade quase que de poesia" (207). Embora inicie o artigo destacando a "indiscutivel qualidade estética" dos textos do escritor, propõe discutir as formas de inserção do escritor no cenário cultural brasileiro, no final do século 20, início do século 21.

Conclusão

A leitura da critica aponta para quatro linhas de interpretação aplicadas a obra de João Antônio: questões sobre malandro ou malandragem, sobre identidade, sobre estética do autor e sobre resignacao, ressentimento e melancolia. Esta revisão de modo algum se propôs exaustiva, sobretudo pelo recente despontar de pesquisas de maior peso em torno do escritor e sua obra. Ao constatar que João Antônio percorre os caminhos das Letras, a partir da vivência escolar, e se firma no sistema literário, por meio dos livros e da crítica de jornal e acadêmica, e que delineamos alguns fundamentos que sustentam a consciência de sua prosa.

Notas

1 Este trabalho tem por base uma parte do primeiro capitulo da tese de doutorado, em Teoria da Literatura, "Cinzências da Literatura: João Antônio com Nietzsche".


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Recibido: 21/8/ 2016
Aceptado: 22/11/2016

 

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