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versão On-line ISSN 0718-2236

Ultima décad. vol.26 no.49 Santiago dez. 2018

http://dx.doi.org/10.4067/S0718-22362018000200022 

Juventudes en contextos educativos

A desigualdade de gênero na Educação Física Escolar

La desigualdad de género en la educación física escolar

Gender inequality in physical education in the school

Giovanni Frizzo 1  

Pamela Alves 2  

Katarina Cecchim 3  

1 Professor do Departamento de Desportos da Escola Superior de Educação Física da Universidade Federal de Pelotas. Doutor em Ciências do Movimento Humano. Pelotas-RS, Brasil. E-mail: gfrizzo2@gmail.com

2 Professora de Educação Física, graduada em Licenciatura na Escola Superior de Educação Física da Universidade Federal de Pelotas. Pelotas-RS, Brasil. E-mail: pamelaxa92@hotmail.com

3 Estudante de Licenciatura em Educação Física, na Escola Superior de Educação Física da Universidade Federal de Pelotas. Pelotas-RS, Brasil. E-mail: kanakote@hotmail.com

Resumo

O objetivo desse artigo é analisar as expressões da desigualdade de gênero nas aulas de Educação Física (EF) na escola, tendo como objeto de investigação um estudo realizado em duas escolas públicas de educação básica no município de Pelotas-RS. Para a pesquisa, realizou-se análise de documentos e utilização de questionários estruturados com perguntas abertas e fechadas, respondido por estudantes do terceiro ano do Ensino Médio. Os resultados a que chegamos é de que a perspectiva hegemônica de EF reproduz as desigualdades da sociedade em geral, aprofundando a desigualdade e opressão à mulher.

Palavras chave: educação física; preconceito; escola pública

Resumen

El objetivo de este artículo es analizar las expresiones de la desigualdad de género en las clases de Educación Física (EF) en la escuela, teniendo como objeto de investigación un estudio realizado en dos escuelas públicas de Educación Básica del municipio de Pelotas-RS. Para la investigación, se realizó análisis de documentos y se usaron cuestionarios estructurados con preguntas abiertas y cerradas, contestados por estudiantes de tercer año de secundaria. Los resultados a los que llegamos señalan que la perspectiva hegemónica de la EF reproduce las desigualdades de la sociedad en general, profundizando la desigualdad y la opresión a la mujer.

Palabras clave: educación física; preconcepto; escuela pública

Abstract

The present article aims to analyze the expressions of gender inequality in Physical Education (PE) classes in school, with a study performed in two primary schools from Pelotas-RS as its object of investigation. The data was obtained by means of document analysis and open and closed - ended questions in questionnaires answered by 11th grade students. The results show that the hegemonic perspective of PE reproduces social inequalities in general, making inequality and women’s oppression deeper.

Keywords: physical education; preconception; public school

1. Introducción

A desigualdade de gênero presente na forma de organização da vida social se expressa também nas instituições de ensino. Implícita ou explicitamente, é possível identificar tal diferença na formação escolar, especialmente no trato com o conhecimento e organização do trabalho pedagógico. Nesse sentido, o objetivo desse artigo é analisar as expressões da desigualdade de gênero nas aulas de Educação Física (EF) dentro da escola, tendo como objeto de investigação um estudo empírico que teve como campo de pesquisa duas escolas públicas, uma da rede estadual e outra da rede federal de educação básica no município de Pelotas-RS. A metodologia empregada lançou mão da análise de documentos oficiais e também da utilização de questionários estruturados com perguntas abertas e fechadas, respondido por estudantes do terceiro ano do Ensino Médio das instituições acima citadas.

Ao observarmos a forma escolar hegemonicamente existente, é bastante comum identificarmos a consolidação de determinadas práticas e concepções que cristalizam-se no ambiente escolar de tal forma que criam as condições para a existência de uma cultura escolar própria. Algumas destas práticas envolvem questionamentos que acompanham estudantes e trabalhadores da educação ao longo de todo o processo formativo escolar. Na EF, a ideia geral de que há esportes próprios para homens e outros para mulheres, consolidou-se ao longo dos tempos com caráter sexista, por exemplo quando se pensa que futebol é para meninos e voleibol é para meninas, assim como o conteúdo de dança é próprio apenas para meninas e lutas para meninos. É fato que, na atualidade, tais determinações de cunho sexista estão sendo, pouco a pouco, desmistificadas na escola e percebe-se alguns avanços do ponto de vista do acesso às práticas oriundas da cultura corporal.

2. A Educação Física e a desigualdade de gênero na escola

Em que pese a EF enquanto componente curricular estar presente ao longo de praticamente toda a estruturação histórica da escola no Brasil, é possível identificar que este componente também atravessou, ao longo dos anos, diferentes concepções e formas de tratar o conhecimento que guarda particularidades próprias em relação às demais disciplinas do currículo escolar. Até a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996) promulgada em 1996, a EF era concebida como «atividade curricular». Ou seja, era tratada como um espaço do «fazer pelo fazer», não se considerava como elemento constituinte da formação dos estudantes, com conhecimentos a serem apreendidos na escola e/ou com aprendizagens significativas.

Do ponto de vista da legislação que interferiu diretamente nas aulas de EF, é importante destacar a Deliberação nº 7, de 1965, do Conselho Nacional dos Desportos (Brasil, 1965) que regulava quais práticas desportivas cabiam às mulheres:

  1. Às mulheres se permitirá a prática de desportos na forma, modalidades e condições estabelecidas pelas entidades internacionais dirigentes de cada desporto, inclusive em competições, observado o disposto na presente deliberação.

  2. Não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo-aquático, pólo, rugby, halterofilismo e baseball.

  3. As entidades máximas dirigentes dos desportos do país poderão estabelecer condições especiais para a prática de desportos pelas mulheres, tendo em vista a idade ou o número incipiente de praticantes em determinada modalidade, observadas, porém, as regras desportivas das entidades internacionais.

  4. No caso de desporto que não seja dirigido por entidade internacional, a dirigente no Brasil deverá solicitar ao CND a devida autorização para que possa ser praticado pelas mulheres.

Na caracterização da EF como atividade curricular se aprofundou o caráter da didática tecnicista, principalmente com a aprovação das Leis 5.540/1968 e 5.692/1971, evidenciando-se ainda mais no Decreto Lei 69.450/1971 (Brasil, 1971) que, no art. 1º, refere-se à EF como sendo: «atividade que por seus meios, processos e técnicas, desperta, desenvolve e aprimora forças físicas, morais, cívicas, psíquicas e sociais do educando [constituindo-se em] um dos fatores básicos para a conquista da educação nacional». Nesse Decreto, se instituiu a EF como atividade regular dos currículos de todos os níveis de ensino (incluindo o Ensino Superior). Chama atenção, ainda, o fato de que a organização didática da EF previa no s padrões de referência estabelecidas nesta Lei que: «Quanto à composição das turmas, 50 alunos do mesmo sexo, preferencialmente selecionados por nível de aptidão física», ou seja, as aulas de EF na escola deveriam ser separadas por nível de aptidão física e por sexo, segregando as práticas para meninos e para as meninas.

Tais legislações não somente influenciaram no caráter sexista das aulas de EF na escola, como também refletiam as ideias hegemônicas de segregação do acesso às manifestações da cultura corporal às quais não cabia às mulheres acessarem parte desta cultura. Como aponta Altmann (2015), o caráter prático da disciplina de EF, o fato dela lidar com o corpo, compreendido a partir da sua perspectiva biológica, a organização masculina e feminina da maioria das competições esportivas e as diferenças de habilidade entre meninos e meninas têm sido utilizado como justificativa para a separação de meninos e meninas. Porém, a autora indica que tal perspectiva é precedida pela concepção de EF consolidada na escola ao longo do tempo, «historicamente essa separação precede a hegemonia do esporte como conteúdo curricular da educação física escolar» (Altmann, 2015, p. 24).

Sobre este aspecto, Soares et al. (1992, p. 48) destacam que sendo uma produção histórico-cultural, «o esporte subordina-se aos códigos e significados que lhe imprime a sociedade capitalista e por isso, não pode ser afastado das condições a ela inerentes, especialmente no momento em que se lhe atribuem valores educativos». E concluem que «por essa razão, pode ser considerado uma forma de controle social, pela adaptação do praticante aos valores e normas dominantes defendidos para a funcionalidade e desenvolvimento da sociedade» (Soares et al., 1992, p. 48). Ou seja, através da predominância do esporte na EF escolar e seu caráter institucionalizado, competitivo e demarcado pelo rigor técnico de rendimento, tais desdobramentos para a aprendizagem escolar são atravessados por lógicas esportivas que reforçam a desigualdade social e, neste caso, sexual.

Em que pese a realidade escolar e a perspectiva hegemônica da EF ainda parecer cristalizadas nas instituições de ensino, nas últimas décadas a produção do conhecimento tem se debruçado sobre a questão e proporcionado reflexões que problematizam tais concepções ainda enraizadas na EF escolar, especialmente ao inserir o debate de gênero. Antes disso, de acordo com Altmann (2015, p. 23), «havia pesquisas que se aproximaram do que hoje entendemos sobre gênero, sobre mulher ou, mesmo, sobre turmas mistas de educação física e co-educação, mas ainda sem operar com o conceito de gênero».

É a partir da análise das questões de gênero (ainda que com diferentes concepções) que o campo científico da EF começa a superar perspectivas que naturalizam a desigualdade entre homens e mulheres reproduzindo a lógica patriarcal de opressão às mulheres.

Os estudos sobre gênero têm problematizado o caráter natural e biológico dos corpos e das diferenças entre homens e mulheres. Seria um engano pensar que o corpo é apenas regido por leis fisiológicas que escapam da história e da cultura. O corpo e as relações de gênero são socialmente produzidos também dentro dos currículos escolares (Altmann, 2015, p. 24).

A caracterização oferecida por Haraway (2004, p. 211) de que «gênero é um conceito desenvolvido para contestar a naturalização da diferença sexual em múltiplas arenas de luta», nos instrumentaliza para compreender que as desigualdades de classes sociais se desdobram também em antagonismos de gênero, caracterizado aqui como opressão à mulher. A mesma autora reforça que a existência de setores oprimidos e marginalizados não é fruto do acaso, muito pelo contrário, é o resultado de um sistema assentado na desigualdade e na exploração, cuja origem pode ser demarcada, em linhas gerais, desde «quando o homem se converteu em proprietário privado dos meios de produção e para conservar propriedade reivindicou a propriedade da mulher» (Montenegro, 1981, p. 12).

Nesse sentido, Toledo (2008, p. 15) afirma que a opressão é «a atitude de se aproveitar das diferenças que existem entre os seres humanos para colocar uns em desvantagem em relação aos outros, gera uma situação de desigualdade de direitos, de discriminação social, cultural e econômica».

Toledo (2008, pp. 46-47) relaciona, ainda, a luta de classes e seu impacto na desigualdade de gênero em vista das demandas do capital em antagonismo com a classe trabalhadora:

Ser operadora de máquina, exercer as tarefas mais mecânicas e repetitivas, não assumir cargos que exijam decisão e responsabilidade, enfim, ser uma trabalhadora não-qualificada: essa é a especialidade da mulher no capitalismo. E isso se faz em nome do gênero, para que ela não abandone tarefas de reprodução da mão-de-obra no lar, de onde o capital extrai uma parte de mais-valia; continue se ocupando das tarefas domésticas, com as quais supre as deficiências do Estado em relação aos serviços públicos, receba salários precários e sirva de mão-de-obra barata e descartável.

A desigualdade de condições e acesso ao trabalho, que por si só já é uma expressão da discriminação à mulher, é agravada quando obtemos dados da realidade da desigualdade sexual no Brasil. De acordo com o Mapa da Violência 2015 (Waiselfisz, 2015), no ano de 2013, 13 mulheres foram vítimas de feminicídio (crime de ódio baseado no gênero definido como assassinato de mulheres) por dia, resultando na taxa de 4,8 feminicídios a cada 100 mil mulheres que coloca o Brasil na quinta posição do ranking mundial de assassinato de mulheres. Neste levantamento também é diagnosticado que mais de 50% dos feminicídios são ocasionados por familiares ou companheiros das vítimas; e a maior parte das mulheres assassinadas são negras (66,7%) e jovens entre 18 e 30 anos. Tais dados nos permitem compreender que as desigualdades de gênero tem desdobramentos severos para a vida das mulheres, na medida em que constantemente vivem ameaçadas pelas diferentes formas de violência que sofrem ao longo da vida. Tais violências (físicas, psicológicas, simbólicas, etc.) são reforçadas pelos estereótipos existentes no esporte e nas práticas corporais em geral.

É necessário compreender que assim como outras formas de opressão, a de gênero não é algo natural e que tenha como base a explicação biológica, ela é construída a partir de um contexto sócio-cultural, em que prevalece o masculino em detrimento do feminino. Costa e Silva (2002) acrescenta que a propagação da ideia de que a mulher tem papel secundário na sociedade é sugerido de maneira nada sutil através de instituições, ciências e religiões. E historicamente, essa pressão da sociedade tem colocado a mulher a ocupar cargos com menor poder de decisão e influência, com menores salários, com direitos não moldados a suas reais necessidades, como na saúde, em que não é tratada com a especificidade que requer.

Essa lógica opressora é reproduzida em diversas instâncias sociais, e uma delas é a escola. Sobre isso, Rohden (2009) destaca a importância da escola na eliminação do preconceito e de práticas discriminatórias, devendo incorporar a discussão não apenas em datas comemorativas, mas na própria dinâmica das relações entre alunos e professores e no material didático utilizado. Até porque a experiência da opressão não leva automaticamente à resistência e nem mesmo à unidade com outros grupos oprimidos. Pode, inclusive, levar ao isolamento e à submissão ao naturalizar a desigualdade como parte estrutura da vida em sociedade. Com o intuito de traçar objetivos que busquem enfrentar práticas discriminatórias, a escola precisa ser de fato o ambiente que aproxima o indivíduo das discussões, que o torna contestador de sua realidade e junto a isso, um analisador desta como um todo.

A observação atenta ao cotidiano escolar e as manifestações da cultura corporal desenvolvidas neste espaço, seja nas aulas de EF, nos intervalos entre períodos ou competições escolares, é recorrente encontrarmos segregação entre meninas e meninos nestas atividades: «homens jogam futebol», «meninas jogam vôlei ou dançam». Tal manifestação do sexismo das práticas corporais é um desafio para docentes e para a organização do trabalho pedagógico da EF. Se, por um lado, a docência na perspectiva contra-hegemônica busca alternativas pedagógicas para enfrentar essa realidade, por outro lado, os processos formativos fora da escola se manifestam também dentro das instituições. Em que o envolvimento coletivo de meninos e meninas em uma mesma atividade torna-se desafiador na medida em que a naturalização da desigualdade faz parte da formação de jovens e adolescentes.

Uma das discussões presentes na formação inicial e no campo de tralho docente da EF é a organização pedagógica das aulas de forma mista ou separada. Isto é, a aula de EF deve ser com meninos e meninas realizando as mesmas atividades, ao mesmo tempo e espaço? ou deve-se privilegiar as particularidades biológicas supostamente justificadas para segregar as atividades da EF na escola?

Tal questão tem expressão significativa na EF a tal ponto que os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) indicam a necessidade de superar esta segregação com parte da formação humana na escola. Nos dois livros dos PCNs destinados a essa área -1ª à 4ª série (Brasil, 1997) e da 5ª à 8ª série (Brasil, 1998a)-, assim como no livro destinado aos Temas Transversais (Brasil, 1998b), estão presentes indicações de que as aulas de EF aconteçam de forma mista, «buscando-se com esse recurso trabalhar questões de gênero e educar para o respeito às diferenças e para a desconstrução de preconceitos» (Dornelles e Fraga, 2009, p. 144).

[...] as aulas mistas de Educação Física podem dar oportunidades para que meninos e meninas convivam, observem-se, descubram-se e possam aprender a ser tolerantes, a não discriminar e a compreender as diferenças, de forma a não reproduzir, de forma estereotipada, relações sociais autoritárias (Brasil, 1997, p. 30 e 1998a, p. 42).

Porém, no período recente do Brasil, alguns retrocessos em curso demarcam uma ofensiva da classe dominante patriarcal contra a luta pela igualdade de direitos das mulheres. Destacamos, como exemplos, a Base Nacional Curricular Comum aprovada recentemente e que excluiu quaisquer discussões de gênero e sexualidade dos programas de ensino das escolas; assim como, o Programa Escola Sem Partido -que tramita no Congresso Nacional- que visa cercear o conhecimento produzido na escola com caráter de superar as desigualdades sociais, econômicas, de gênero, raça, orientação sexual, etc.

Porém, há um número significativo de escolas que tem em seu projeto pedagógico a organização das aulas em turmas masculinas e femininas, ou seja, as aulas de EF separadas por sexo, inclusive em uma das escolas do campo empírico de nosso estudo. Há ainda, uma forma extra-oficial (Dornelles e Fraga, 2009) de aulas de EF separadas por sexo: quando a turma é mista, mas as atividades são separadas em momentos distintos entre meninos e meninas ou quando realizam, ao mesmo tempo, atividades separadas por sexo em espaços diferentes.

Ao mesmo tempo em que a interação de gêneros só pode se manifestar com a convivência em diferentes práticas, é preciso observar que o trabalho pedagógico deve contemplar tal interação também na organização metodológica das aulas, atentando para processos didáticos que não tornem a interação uma relação de «inclusão excludente». Ou seja, a aula mista e o jogo separado.

Tal diagnóstico não é somente encontrado no Brasil. Em um estudo realizado em escolas secundárias (Ensino Médio) da região do Porto, em Portugal, Goellner et al. (2009) entrevistaram estudantes meninos e meninas para compreender o que pensam sobre as aulas de EF em relação à questões de gênero. Os dados demonstraram que 50% das meninas entendem ser ruins as relações de gênero na EF; e 70% das meninas não gostam de aulas em conjunto com meninos. As autoras concluíram que o ambiente vivido pelas alunas na EF «não é convidativo para uma plena participação e comprometimento com as actividades desportivas e carece de proporcionar iguais oportunidades num plano de educação e formação de todos e todas os/as jovens» (Goellner et al., 2009, p. 176). Ainda, indicam elementos importantes para pensar o projeto educacional que deve subsidiar a organização do trabalho pedagógico, na medida em que a EF, como qualquer outra disciplina escolar, «não se preocupa apenas com a aprendizagem de conteúdos que lhe são próprios. A aprendizagem transcende habilidades motoras, tácticas, factos e conceitos, e inclui valores, atitudes, autoconceitos, envolvimento social, interacções intelectuais e visões do mundo» (Goellner et al., 2009, p. 183).

3. Estudo empírico

O universo empírico em que a investigação foi desenvolvida abarcou duas escolas públicas -uma da rede federal e outra da rede estadual- localizadas no município de Pelotas-RS. Foram selecionadas as turmas de Ensino Médio já em fase de conclusão da Educação Básica, em razão que a compreensão é de que estes estudantes já vivenciaram um tempo maior na escola e seguramente teriam elementos mais aprofundados de análise em razão de sua experiência na escola e nas aulas de EF. Ainda, destacamos que a escola da rede federal (RF) tem aulas de EF separadas por sexo e a escola da rede estadual (RE) tem aulas de EF mistas.

Ao todo, participaram do estudo 59 estudantes, sendo 31 alunas e 28 alunos. Destes, 44 estudantes (22 meninos e 22 meninas) da rede federal e 15 (9 meninas e 6 meninos) da rede estadual.1 Ambas escolas autorizaram a realização do estudo nas instituições e assinaram termo de consentimento no qual explicitou-se a garantia de confidencialidade e anonimato dos estudantes, professores e gestores das instituições.

O processo de análise dos dados caracterizou-se por ser sistemático, contínuo, mas não rígido, e se concluiu com a emergência de regularidades (Lincoln e Guba, 2000), ou seja, quando nenhum outro elemento novo emergiu da análise de dados. Assim, procedeu-se a uma análise indutiva dos dados, na medida em que as respostas abertas permitiam compreender as regularidades e as contradições (não menos importantes) em que as categorias de análise não foram precedentes à coleta de informações, mas surgiram durante a fase de tratamento destas. Em seguida, desenvolvemos a análise interpretativa a partir destas categorias empíricas identificadas. Na exposição das categorias, privilegiaremos os fragmentos de respostas dos estudantes em razão de expressarem qualitativamente o conteúdo das informações coletadas.

4. Análise dos resultados e discussão

A partir dos elementos captados no estudo empírico, foi possível estabelecer três categorias de análise: i) concepção de EF; ii) desigualdade nas aulas de EF; iii) opressão à mulher na sociedade. Tais categorias entrelaçaram-se na compreensão geral do fenômeno pesquisado, na medida em que foi possível identificar as relações entre a estrutura social desigual, a concepção de EF e os processos discriminatórios envolvidos no cotidiano das aulas, estes elementos sistematizados com base no referencial teórico que embasou a pesquisa. A seguir, apresentamos os dados e discussão destas categorias.

a) Concepção de EF

Na primeira parte dos questionários, os alunos e alunas responderam sobre suas perspectivas acerca das aulas de EF e o que pensam ser o papel da disciplina nas suas formações. Foi possível identificar que tanto meninos quanto meninas compartilham das mesmas impressões, o que mais frequentemente emergiu foi que o papel da EF é estimular a prática regular de atividade física, seguida de promoção da saúde, vida saudável e rendimento físico/aptidão física. Alguns também trouxeram outros fatores, como bem estar social e mental, consciência social, autoconhecimento corporal, estética, e até mesmo a aula como algum tipo de passatempo.

Os fragmentos das respostas nos ajudam a compreender que o caráter da EF é visto como atividades práticas sem necessariamente ter um conteúdo a ser apreendido: «penso que atualmente vem sendo muito pesada fisicamente, tendo pouca teoria. Porque temos recebido muita instrução sem ao menos saber o que estamos fazendo»; «em questão da formação, serve para ter um bom rendimento e preparo físico»; «o dever é dar aula prática, porque já ficamos a vida inteira dentro de uma sala de aula, a EF é pra descontrair»; «muitas pessoas fazem exercícios físicos só nas aulas».

Ao mesmo tempo, nas respostas a EF é sempre tratada como esporte. Possivelmente as experiências de EF que tiveram ao longo de sua formação escolar reproduziram a lógica da esportivização presente hegemonicamente na EF escolar, desconsiderando outras dimensões e conteúdos da EF oriundos das manifestações da cultura corporal, tais como ginástica, dança, jogos e lutas. Ainda, dentro da lógica esportivizada da EF, cabe destacar que a sua referência é do esporte de alto-rendimento, competitivo, cujo rendimento e resultados são mensurados pela performance esportiva de cada estudante, negligenciando aspectos pedagógicos de aprendizado do conteúdo esportivo que envolve aspectos que vão além da performance e do rendimento esportivo. Segundo Soares et al. (1992, p. 72), os estudantes, na maioria das vezes, «não tem acesso a informações sobre seu desempenho, ou, quando as tem, estas são vagas e imprecisas ou referem-se unicamente a dados mensuráveis, comparáveis, negligenciando-se referências qualitativas do processo ensino-aprendizagem».

A predominância esportiva na EF escolar junto à sua concepção competitiva, acabam por fomentar relações desiguais de acesso à cultuar corporal, tanto em diferentes níveis de rendimento de estudantes, como também pela desigualdade de gênero. Nessa lógica de resultados, mesmo que separados, nem todas as meninas e todos os meninos irão se desenvolver dentro de suas capacidades, continuarão sendo mais favorecidos os mais aptos dentro das divisões sexuais.

b) Desigualdade nas aulas de EF

O segundo bloco de questões versou sobre o que os e as estudantes pensam sobre aulas mistas e separadas de EF, sugerindo que opinassem sobre suas preferências. Nesta questão, é importante verificar que há diferenças significativas nas respostas em relação às duas escolas em que realizamos a investigação, o motivo principal é que na RF as aulas são separadas e na RE as aulas são mistas.

Na RF, a maioria avalia como positivo o método das aulas separadas por gênero, aproximadamente 90% das respostas afirmaram preferir aulas separadas. Dentre os meninos, foram frequentes respostas como: «se fizessem todos juntos seria ruim, porque alguma ou a maioria (das meninas) não tem a mesma resistência, força, etc, então seria difícil de fazer uma aula com intensidades iguais»; «eu acho correto (ser separado por sexo), pois as meninas em certos aspectos, não tem a mesma capacidade que nós, elas não tem a mesma agilidade, a gente corre mais que elas»; «as mulheres não tem um rigor físico igual ao nosso». Tais elementos apontam que o esperado das aulas é o rendimento físico, pois os pontos negativos destacados são relacionados aos aspectos de aptidão física, como estes fragmentos indicam.

Além de colocar a menina como inferior ao falar das capacidades físicas, alguns colocaram que se a aula fosse conjunta, a aula dos meninos pode ser prejudicada, como respondeu um deles «as mulheres podem acabar “estragando” o jogo dos homens de certa forma, “tirando” o espaço masculino»; outra resposta reforça esse pensamento, mas vem de uma menina: «as meninas tem uma condição física diferente, o que pode dificultar a aula».

Outro aspecto que aparece nas respostas é sobre o aprendizado decorrente das aulas conjuntas, porém, esse aprendizado só é considerado unilateralmente, ou seja, as meninas aprendendo com os meninos: «as mulheres de certa forma iriam melhorar muito o seu desempenho fazendo com os homens, pois iria ser mais “puxado” do que só com mulheres». É ignorado o fato dos homens aprenderem algo com as mulheres, como se as virtudes necessárias para as aulas de EF se limitassem ao sexo masculino. Isso também é reforçado pelas respostas das meninas, ao passo que ao destacarem pontos negativos da aula ser separada por sexo colocaram «o ponto negativo é que poderíamos aprender mais com os meninos».

Em nenhum dos questionários, tanto masculinos quanto femininos, foi levantada a possibilidade dos meninos aprenderem algo com as meninas. Porém, mesmo com a maior parte dos sujeitos colocarem-se contrários a possibilidade de aulas mistas, é importante destacar as reflexões que que alguns (menos da metade) apontam, avaliando desnecessária a divisão. Dentre as meninas algumas respostas foram na contramão da maioria, «acho nada a ver separar, pra mim não muda nada eles estando ou não»; «penso que não é necessário ser separado por sexo, pois acredito que ambos os sexos sejam capazes de praticar os mesmos esportes da mesma forma»; «talvez fosse legal fazer uma aula mista por semana, questão de comunicação». Um dos meninos também foi nessa direção, ao explanar sua opinião: «não vejo muita diferença. Muitos dizem que é separado pois os homens teriam mais aptidão física e os exercícios são mais puxados para nós, mas, particularmente, acredito que ambos têm a mesma capacidade física e poderiam praticar os mesmos exercícios». E outro menino respondeu: «tanto faz, depende do professor achar um exercício adequado para ambos os sexos». É provável que a maior parte dessas pessoas tenham tido a educação física anterior mista, e ao que parece, através das suas respostas, percebemos que rejeitam o modelo do qual tem conhecimento e vivência.

Na RE, ao mesmo tempo em que ao serem perguntados sobre as aulas serem mistas ou separadas, a maioria afirmou que deveria ser mista pois «integra os gêneros e acostuma os meninos a jogarem com as meninas»; «somos uma turma»; «todos são iguais, o que um pode fazer todos podem»; «se é uma aula ela deve ser dada igualmente para todos os alunos», «mista, para não ter discriminação», foi identificado que as aulas de EF que realizam adota uma forma extra-oficial de separação por sexo (mesmo as aulas sendo mistas, eles separam-se por sexo para os jogos), tal como podemos verificar nas seguintes considerações: «jogo vôlei com alguma colega, não gosto de jogar com os meninos»; «ele [professor] sempre entrega a bola de futebol para os meninos e a de vôlei para as meninas»; «os meninos jogam futebol sempre e as meninas se juntam e ficam jogando vôlei»; «as meninas sempre jogam vôlei e os meninos futebol»; «os meninos não gostam que mulheres joguem futebol junto»; «não gosto de jogar futebol misto porque eles às vezes jogam melhor».

O futebol e o vôlei foram muito citados como divisórios de gênero, o futebol como se fosse um esporte masculino e o vôlei como sendo um esporte aceitável para ambos jogarem. Aqui vemos uma separação de gênero pelo esporte, como se o futebol fosse masculino e o vôlei feminino. Prado, Altmann e Ribeiro (2016, pp. 64-65) apontam preocupações com tal situação segregacionista:

A divisão das práticas corporais e/ou esportivas em «masculinas» ou «femininas» pode, como consequência negativa, gerar atitudes de desvalorização e falta de apoio a algumas Condutas naturalizadas na Educação Física: uma questão de gênero? 65 modalidades, como nos casos do futebol ou de determinadas artes marciais, quando praticadas por mulheres, ou da ginástica artística, do voleibol ou da dança, quando protagonizadas pelo homem. Em situações mais extremas, essas atitudes podem se tornar discriminatórias, apresentando como resultado o preconceito, a intolerância e a demonstração de violência em relação ao que não é considerado «normal» ou «apropriado».

Nas duas instituições em que a pesquisa foi realizada, identificamos dois elementos que retratam algumas expressões da desigualdade de gênero e opressão às mulheres nas aulas de EF: assédio e violência. Tais elementos possivelmente nos ajudam a compreender que haja preferência da maioria das alunas por aulas separadas.

Sobre o assédio, nas respostas da meninas da RF ao questionário, foi citado algumas vezes o constrangimento e a vergonha ao realizar os exercícios físicos: «eu acho muito legal [a aula ser separada por sexo], pois não iria me sentir bem com eles olhando»; «acho que às vezes é necessário [a aula separada por sexo], já que tem atividades que seriam vergonhosas na companhia dos meninos»; «o ponto positivo [da aula ser separada por sexo] é que do contrário, nós meninas não faríamos tudo proposto e sem vergonha na frente dos meninos»; «o ponto positivo das aulas serem separadas é pelo fato das meninas terem mais liberdade de fazer os exercícios».

Este aspecto também é reforçado pelos meninos, como sugerem os fragmentos de respostas: «as mulheres iriam tirar muito a nossa atenção»; «um ponto negativo [da aula ser separada] é que não podemos secar (sic) [olhar intensamente para o corpo das alunas]», «um pró é que [em aulas mistas] teríamos o que olhar»; «ponto positivo [das aulas serem separadas] é que a gente não baba»] «seria bom [aulas mistas] porque elas usam legging».

A partir dessa questão, podemos ver que os motivos pelos quais se opta por aulas separadas são predominantemente diferente entre as meninas e meninos. A maior parte dos meninos veem na aula conjunta um retrocesso nas atividades, pois não conseguiriam desenvolver-se fisicamente ao máximo e as meninas são consideradas obstáculos a performance física dos meninos, seja por suas habilidades e aptidão esportiva ou mesmo por serem tratadas como objetos sexuais. Já a maioria das meninas, prefere aulas separadas por sentir receio em realizar atividades conjuntas aos meninos. Isso pode ser explicado por todo contexto sociocultural em que elas estão inseridas, pois são objetificadas diariamente na rua, em festas, no trabalho, na escola, em casa e em quaisquer que sejam os ambientes em que haja o outro sexo, e junto dele a reprodução dos costumes históricos de oprimir e subjugar a mulher. Então, para as meninas, que embora não tenham mais do que 17 anos, evitar situações em que serão expostas, é recorrente.

Na RE foi evidenciado que um dos aspectos que dificultam a realização das aulas mistas é a violência dos meninos. Alguns fragmentos contribuem para exemplificar este aspecto: «os meninos são brutos» e «pode haver brigas por jogos»; «às vezes eles são meio agressivos e sem paciência»; «não gosto de jogar nenhum jogo pois eles são muito brutos e competitivos»; «vôlei dá pra jogar, mas não gosto de futebol pois eles são muito estúpidos e grossos»; «eles jogam a bola com muita força»; «vôlei dá pra jogar, futebol não pois os guris chegam firmes e podem machucar».

A violência contra a mulher não é natural, mas também construção sócio-histórica. O encorajamento para que os meninos «provem» sua masculinidade também é geradora de pressão psicológica, pois desde criança devem demonstrar agressividade como comprovação de sua sexualidade, portanto devem reproduzir estes comportamentos como formas dominantes de, supostamente, afirmarem sua masculinidade.

Ao serem questionados se identificavam discriminação de gênero nas aulas de EF, algumas respostas demonstram de que forma a opressão se manifesta também nas aulas: «muitas vezes os meninos não deixam as meninas jogarem por serem mais fracas e muitos professores também»; «alguns colegas não deixaram as meninas jogarem futebol, acredito que não deixaram porque elas não sabiam jogar»; «eles não deixaram eu jogar futebol porque não gostam, me senti mal»; «uma vez eu disse que jogava bola e falaram que eu não era guri»; «talvez os meninos achem que por sermos meninas somos frágeis e não podemos jogar com eles».

O diagnóstico encontrado através dos dados coletados indicam que a discriminação sexual nas aulas de EF se expressam nas manifestações dos estudantes de que predomina o rendimento e a performance competitiva, colocando os diferentes níveis de aprendizagem em contraposição e prevalecendo a lógica de que homens são mais fortes, mais hábeis e com maior aptidão física. Este aspecto desdobra-se também nas relações opressoras entre estudantes quando identifica-se manifestações de assédio e violência contra as meninas, ainda que não intencionalmente, mas que ocorre no cotidiano percebido por meninos e meninas.

c) Opressão à mulher na sociedade

O último bloco de questões respondidas pelos estudantes dizia respeito à questões gerais sobre a opressão e discriminação de gênero na sociedade. Tanto na RF como na RE, a grande maioria (mais de 70%) das respostas indicaram que, de fato, identificavam que as mulheres sofrem discriminação dentro e fora da escola.

O primeiro aspecto que expressou a forma como esta discriminação ocorre diz respeito à questão física e justificada por um viés biológico em que supostamente a mulher é do «sexo frágil», esta expressão foi recorrente nas respostas: «as mulheres na grande maioria das vezes tem funções que exigem menor esforço. Mulher não precisa servir no quartel, na maior parte das vezes não trabalha em serviço pesados»; «para muitos a mulher é considerada um ser frágil e acho que por isso são tratadas de forma diferente»; «quando negamos um serviço, pois achamos que ela não aguenta fisicamente»; «somos conhecidas como o sexo frágil. Ex.: arrumar emprego como técnica em eletrotécnica ou mecânica. Vão preferir homens»; «as pessoas acreditam que elas sejam frágeis», «por ser do sexo frágil», «temos uma cultura machista que diz que as mulheres são mais frágeis», «às vezes por serem do sexo frágil».

As relações de mercado de trabalho também foram identificadas como espaços em que a desigualdade sexual ocorre: «muitas vezes recebem menos nos trabalhos (em empresas) por serem mulheres»; «nunca vi mulher policial, sei que tem, mas talvez pela discriminação, são minoria nessa profissão»; «quando não são domésticas, as mulheres trabalham principalmente em restaurantes, de babás, lojistas (em geral)»; «muitos cargos de trabalho o homem manda e a mulher é a secretária». Tais respostas coadunam com dados oficiais da desigualdade sexual existente no mercado de trabalho, especialmente quando se observa que há.

Instigados por suas próprias reflexões, o cotidiano familiar que é parte importante da vida social de jovens e adolescentes foi motivador de alguns apontamentos acerca da desigualdade sexual, na qual as tarefas domésticas são elementos de distinção entre a divisão social e a divisão sexual do trabalho. Os fragmentos das respostas dos questionários demarcam de forma significativa: «alguns homens que são casados com as mulheres, falam que elas não devem trabalhar e devem ficar em casa»; «ainda há exemplos de mulheres que são maltratadas dentro de casa»; «na casa da minha avó eu sempre fico com aquela parte da cozinha, e os netos meninos ficam na sala vendo jogo»; «muitas atividades domésticas os homens não realizam, pois dizem que é coisa de mulher»; «porque o homem tem mais força, a mulher tem que fazer coisas mais simples, como lavar roupa, fazer comida e satisfazer o homem, que por sua vez trabalha pra sustentá-la. Ex.: mulheres cuidam a casa e homem trabalha»; «nos domingos os homens da minha casa vão para a churrasqueira, e nós mulheres lavamos a louça»; «como no trânsito, em que as mulheres são generalizadas como más motoristas».

Algumas reflexões esboçadas nas respostas demonstram que existe inconformidade dos estudantes em relação a situações de desigualdade: «isto vem acontecendo há tempos, pois além das mulheres serem discriminadas, os homossexuais e negros também são discriminados»; «um professor uma vez disse que as meninas da sala eram assanhadas pelo simples fato da turma se dar bem com os guris do outro curso e eles frequentarem nossa sala»; «muitas vezes dizem que a mulher só serve pra cozinhar lavar louça, eu penso diferente, porque as mulheres tem que ter a mesma liberdade para fazerem o que quiserem assim como os homens»; «com o passar do tempo a mulher vem ganhando o seu devido espaço, ainda falta muito para que os direitos sejam completamente iguais para ambos os sexos»; «comecei [a refletir] na infância, com os estímulos para as meninas brincarem de casinha, cuidar de bonecas, depois na vida adulta sofrem muito com o machismo, que defende o mesmo que as brincadeiras infantis: que a mulher deve cuidar da casa»; «às vezes os homens se acham superiores, não existe isso, não existe “sexo frágil”».

Através da utilização do questionário como instrumento de investigação, pudemos identificar elementos reflexivos significativos para compreender de que forma a desigualdade de gênero se manifesta nas aulas de EF na escola, bem como entender as reflexões que fazem os jovens e adolescentes acerca das opressões à mulher existente na escola e na sociedade.

5. Conclusão

A perspectiva hegemônica de EF escolar, de caráter tecnicista, biologicista e que privilegia a performance esportiva, impõe a lógica competitiva e do rendimento reproduzindo na escola relações de sobreposição entre os mais «fortes» sobre os mais «fracos». Do ponto de vista pedagógico, há evidentes prejuízos de que esta perspectiva limita sobremaneira o acesso à outros conteúdos da EF e, ainda, o conteúdo esportivo é tratado somente pelo viés do desempenho físico-técnico, não abrindo possibilidades de compreensão do fenômeno esportivo de maneira mais ampla. Portanto, cerceando o acesso a este conhecimento para um numero significativo de estudantes que não experiências esportivas exitosas e acabam por terem seu aprendizado prejudicado. Outro aspecto a destacar é que o aprendizado na escola não se limita ao conteúdo das disciplinas, mas também pelas relações estabelecidas entre os sujeitos das instituições de ensino, na relação com docentes e gestores e entre os próprios estudantes que convivem com uma naturalização da desigualdade existente fora do ambiente escolar.

As meninas não têm encontrado espaço para que experimentem os movimentos que seu corpo, junto a sua mente, produzem. Acabam, como vimos em suas respostas, se reprimindo para que não intervenham no desenvolvimento físico dos meninos, se reprimem por terem sempre, em toda suas trajetórias, dedos apontados em suas direções, dizendo-as sobre suas vulnerabilidades e fraquezas físicas, lhes fazendo acreditar que são os seres menos capazes. Embora a disciplina esteja dentro da escola para ser imparcial, os esportes nela inseridos são classificados pelos papéis sociais que os meninos e as meninas enfrentam no dia a dia. Isso não se deve ao esporte em si, mas à cultura da submissão feminina, que identifica todos os segmentos que o ser humano cria como divisórios.

Sobre a questão de aulas mistas ou separadas, embora não se tenha percebido diferença significativa na preferência dos estudantes de ambas as escolas por uma ou outra, se identificou que os motivos mais relevantes para que a maioria dos estudantes preferissem aulas separadas se deveu à questões relativas à aspectos físicos e desempenho (dada a concepção da EF hegemônica e presente nas instituições), assim como as meninas relataram que em aulas separadas não sofrem com assédio e/ou violência. Ou seja, não se trata de melhoria de aprendizado ou da formação, mas sim um mecanismo de proteção à liberdade de realização de atividades propostas sem que a opressão cerceie o acesso ao conhecimento por parte das meninas. De forma oficial ou extra-oficial, a separação entre meninos e meninas nas aulas de EF não podem produzir a elevação de patamares éticos e de caráter de jovens e adolescentes

A utilização do questionário com perguntas abertas foi um instrumento que julgamos importante para que os sujeitos dos processos educativos possam ter voz e expressar suas reflexões acerca do ambiente em que conviveram durante a sua infância e adolescência, com o intuito de entender de que forma as instituições são percebidas por estes sujeitos. Este instrumento também permitiu interpretarmos que algumas respostas vagas ou que os estudantes não sabiam opinar decorrem da pouca discussão sobre esse assunto no ambiente escolar e possivelmente fora dele também. Em alguns momentos, percebeu-se que os estudantes não se sentiam confortáveis ao falar, ou por que realmente não pensavam sobre isso ou por que a questão é um tabu na sociedade. Se de fato eles realmente não pensavam sobre isso, a situação é agravante: os dados e impactos sobre a desigualdade ainda são grandes, e a interação dos alunos e alunas dentro da escola não acontece de maneira harmoniosa.

A partir dos trechos e falas apresentadas por estudantes, identifica-se que as percepções de meninos e meninas reafirmam a presença da objetificação dos corpos femininos. As aulas separadas seriam, portanto, necessárias para evitar atitudes supostamente naturais de assédio dos meninos sobre as meninas, argumento muito parecido com aqueles que são utilizados para a violência contra as mulheres em outros níveis. Por exemplo, quando argumenta-se que a «culpa do estupro é da mulher que usa roupas curtas».

Por fim, a desigualdade de gênero é uma construção histórica e social, pois é traçada pelo ser humano desde sua infância, passando por gerações e propagando-se de forma prejudicial. Se foi construído pelo próprio ser humano, cabe a ele cessá-lo na perspectiva de uma outra sociedade e projeto educacional.

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1 O número de estudantes que fez parte do estudo representa a totalidade dos estudantes das turmas selecionadas. No entanto, tal diferença de número de estudantes não expressaram discrepâncias significativas.

Recebido: 02 de Dezembro de 2017; Aceito: 04 de Dezembro de 2018

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