INTRODUÇÃO
A Atenção Primária à Saúde (APS) apresenta um papel essencial frente a situações emergenciais, tal como a pandemia de Corona Virus Disease- 2019 (COVID-19). Nesse contexto, foi necessário que fossem adotadas mudanças extremas na organização e na dinâmica de trabalho deste nível de atenção, devido a necessidade de adaptação à nova realidade. Dessa forma, a reorganização dos serviços deveria ser fundamentada nas características da epidemia, prevendo-se a alocação de recursos materiais e humanos, infraestrutura, fluxos e protocolos bem definidos1.
Casos de pneumonia de etiologia desconhecida foram identificados em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, província de Hubei na China, sendo posteriormente identificado um Novo Coronavírus (2019-nCoV) ocasionando um surto preocupante de Síndrome Respiratória Aguda Grave do Coronavírus 2 (SARS-CoV-2)2. A infecção provocada pelo 2019-nCoV recebeu o nome ofi cial de Corona Virus Disease-2019 (COVID-19), em 11 de fevereiro de 20203, sendo considerada uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 30 de janeiro de 2020. Em março de 2020 a OMS, após reconhecer a distribuição geográfica da doença, caracterizou a COVID-19 como uma pandemia.
De acordo com o Painel COVID-19 da OMS, de 03 de janeiro de 2020 a 13 de maio de 2022, o Brasil registrou 30.741.811 casos confirmados da doença e 665.319 mortes. Em relação à América Latina e o Caribe, são 68.937.000 casos de infecção e 1.686.000 mortes4.
Um estudo que levantou as características da APS em sete países latino-americanos (Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Uruguay e Venezuela), no contexto da pandemia COVID-19, descreveu que houve mudanças significativas no processo de trabalho das equipes nesta esfera de cuidado. Além de um fluxo maior de atendimentos, resultando em falta de equipamentos e materiais; houve também a necessidade de reorganização dos serviços, no sentido de diminuir os atendimentos relacionados à prevenção, priorizando os casos de urgência e emergência5.
Num cenário drástico como o apresentado na pandemia, a gestão em saúde tem destacada relevância no direcionamento das decisões que afetarão diretamente a vida das pessoas. Esta coordenação envolve vários aspectos, desde a elaboração de estratégias e objetivos, levantamento de recursos para concluí-los a diagnóstico e planejamento de ações que almejam a melhoria da qualidade de vida individual e coletiva das comunidades6.
No cenário brasileiro, a constituição federal prevê a descentralização do sistema de saúde no país, tornando a gestão do sistema uma responsabilidade compartilhada pela União, Estados e Municípios, respeitando a autonomia de cada ente federado. Contudo, a esfera municipal tornou-se a principal responsável pela gestão da Rede de Atenção à Saúde (RAS) e os gestores municipais assumiram papel fundamental para a execução das ações e serviços de saúde segundo as particularidades de cada local7.
A APS constitui-se principal porta de entrada do sistema de saúde, oferecendo serviços de caráter individual e coletivo, organizando seu processo de trabalho de modo a exercer uma abordagem integral do processo saúde-doença, responsabilizandose pelo usuário, mesmo que este seja atendido por outras unidades; desse modo, norteando as atividades da rede de atenção à saúde8.
Diante disso, num cenário pandêmico, tem importante papel como coordenadora e ordenadora da rede, garantindo o atendimento, classificação de risco e encaminhamento oportuno para demais pontos da rede de atenção, além do acompanhamento longitudinal dos casos e cuidado integral ao indivíduo com foco na sua família. Evitase desta forma a propagação da doença bem como o encaminhamento desnecessário a outros serviços de maior complexidade9.
Contudo, para que a gestão possa ser efetiva, a APS necessita de alocação de recursos financeiros suficientes para o atendimento das demandas da pandemia; dimensionamento de profissionais suficientes e qualificados; oferta de testes diagnósticos; exames complementares, medicamentos e Equipamentos de Proteção Individual (EPI) em quantidade suficiente para atender à demanda; disponibilização de espaço físico adequado para o acolhimento do usuário; elaboração de protocolos e fluxos para a garantia de acesso a outros pontos da rede quando houver necessidade5,10.
Assim, tornam-se relevantes estudos que identifiquem a percepção de profissionais que atuam na APS, em diferentes contextos e categorias, quanto à atuação da gestão municipal, no que tange a oferta de recursos materiais e humanos, fluxos de atendimento e logística de transporte, além do apoio oferecido pelos gestores aos profissionais que atuam na linha de frente neste período. A expectativa é de que os resultados do presente estudo possibilitem direcionar políticas públicas voltadas à gestão dos recursos em saúde e, consequentemente, otimizar a assistência de enfermagem e multidisciplinar na APS.
Frente ao exposto, este estudo teve como objetivo analisar a associação entre variáveis relacionadas à gestão de serviços da APS e características profissionais no início da pandemia da COVID-19.
MATERIAL E MÉTODO
Tipo de estudo e espacialidade: Trata-se de um estudo transversal, do tipo survey, realizado com profissionais de saúde atuantes na APS dos estados brasileiros de Mato Grosso do Sul (MS) e São Paulo (SP), durante os primeiros meses de pandemia da COVID-19. As unidades federativas ora mencionadas foram selecionadas por conveniência.
O Estado de Mato Grosso do Sul tem uma população de 2.651.235 habitantes, e conta com uma cobertura da APS, vinculada ao Sistema Único de Saúde (SUS), de 575 equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF), presentes nos 79 municípios, sendo que 42 deles apresentam 100% de cobertura na APS, apresentando, aproximadamente, um total de 6.000 profissionais atuando nesta esfera de saúde11.
O Estado de São Paulo é a terceira unidade administrativa mais populosa da América do Sul, com 42,6 milhões de habitantes, o que representa 22% da população do país. Possui a maior capacidade instalada vinculada ao SUS no país, com 4,4 mil Unidades Básicas de Saúde (UBS). Atualmente o Programa de Saúde da Família paulista está com 5,2 mil equipes ESF, aproximadamente 52.000 profissionais, perfazendo uma cobertura de 62,9% da população11.
Unidade de análise e critérios: Foram consideradas as seguintes categorias profissionais: Médico(a), Enfermeiro(a), Auxiliar ou Técnico de Enfermagem, Nutricionista, Farmacêutico(a), Psicólogo(a), Assistente Social, Cirurgião-Dentista, Agente Comunitário de Saúde e Auxiliar ou Técnico de Odontologia ou outra categoria profissional de saúde atuante no período.
Os participantes foram selecionados a partir dos seguintes critérios de inclusão: profissional de saúde maior de 18 anos, atuante há pelo menos seis meses na gestão ou assistência direta da APS nos estados de SP ou MS. Foram excluídos os profissionais afastados do serviço antes do início da pandemia no país.
Recrutamento e mostra: Foram utilizados quatro métodos de recrutamento dos profissionais da APS: envio dos links de acesso por meio das Secretarias de Saúde municipais, apresentações presenciais da pesquisa em alguns municípios, divulgação da pesquisa em eventos científicos no Estado MS, e por fim, foi utilizado o método bola de neve em que cada membro da equipe de pesquisa fez a divulgação dos links, compartilhando a mensagem para novos possíveis participantes via WhatsApp. Assim, a amostra por conveniência foi composta por profissionais de saúde da APS, atuantes durante o período da pandemia da COVID-19 nos estados de MS e SP.
Coleta de dados: A coleta de dados foi realizada no período de junho a outubro de 2020. Houve um total de 282 acessos aos questionários, sendo que 6 pessoas não aceitaram os termos de anuência ou não finalizaram o preenchimento do instrumento. Também foram excluídas 17 respostas repetidas, idênticas e sequenciais, entendendo-se se tratar de participantes que preencheram o questionário duas ou mais vezes, o que totalizou 259 participantes dos dois estados. Foram salvaguardados que todos os itens foram devidamente respondidos, considerando a função "resposta obrigatória" configurada no Formulário Google Forms", excetuando os dados sociodemográficos. Os formulários que não apresentavam esses itens, foram considerados e incorporados ao grupo "outros".
O questionário virtual semiestruturado opera-cionalizado pela Plataforma Google Forms* foi proposto pelas próprias pesquisadoras, considerando os aspectos da gestão da APS na pandemia mencionadas no Manual de Recomendações de Proteção aos Trabalhadores dos Serviços de Saúde no Atendimento de COVID-19 e Outras Síndromes Gripais do Ministério da Saúde12 e no Protocolo de Manejo Clínico do Coronavírus (COVID-19) na Atenção Primária à Saúde, 8a versão do Ministério da Saúde13. O instrumento permitiu a obtenção de dados sociodemográficos e contava com 11 questões acerca das atividades desenvolvidas pelos profissionais da APS, que versavam quanto a tipos de atividades assistenciais/gerenciais, estratégias de atividades educativas e de orientação, percepção dos profissionais quanto aos recursos materiais e humanos, à infraestrutura dos serviços, à organização do fluxo de atendimento e transporte e ao apoio da gestão municipal durante o período de pandemia. O acesso ao instrumento foi obtido por meio de um link, encaminhado via e-mail ou WhatsApp. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) também foi encaminhado neste mesmo contato.
Validade e teste piloto do instrumento: Antes do início da coleta, foi realizada uma avaliação prévia do instrumento quanto ao conteúdo e estrutura por quatro especialistas. Todos eram doutores, sendo: dois enfermeiros, um médico e um biólogo, com experiência acadêmica e prática em gestão. Posteriormente, para a avaliação semântica das questões do instrumento, com o objetivo de verificar se houve compreensão do que se queria de cada questão e se as questões eram relevantes para o alcance dos objetivos pretendidos, foi aplicado um pré-teste do instrumento a dez profissionais, sendo: dois profissionais médicos, três enfermeiros, dois auxiliares e três agentes comunitários de saúde. Após essa etapa foram realizados ajustes para obtenção da versão final do instrumento, relacionadas somente a duplicidade de resposta em uma das questões.
O instrumento contemplou questões de múltipla escolha, além de dados de caracterização sociodemográfica (sexo, idade, profissão grau de formação, função na unidade de trabalho: assistencial, gerencial ou ambas as funções) e estado de atuação. As questões de múltipla escolha remetiam à gestão da APS durante a pandemia, referente a: disponibilização de recursos materiais e humanos quali e quantitativamente, adequação da infraestrutura física para o atendimento, apoio da gestão aos serviços, organização do fluxo de atendimento e logística de transporte.
Variáveis, análise e processamento de dados:
Considerou-se como variáveis independentes a categoria profissional (ACS, Auxiliares/Técnicos, Profissionais de nível superior e outros), o estado de atuação do respondente e a função exercida pelo profissional (assistencial, gerencial ou ambas as funções). Consideraram-se variáveis dependentes oferta de recursos humanos, de materiais e apoio da gestão.
Os dados foram processados e analisados por meio do programa R Core Team (2020). Os resultados obtidos para as variáveis foram analisados por meio de distribuição de frequências absolutas e relativas para variáveis categóricas, e médias, desvio padrão, mediana para as variáveis numéricas. Para testar possíveis associações entre as variáveis "oferta de recursos humanos e de materiais" e "apoio da gestão" com "categoria profissional", "estado de atuação" e "função exercida", utilizaram-se os testes qui-quadrado e teste exato de Fisher. O nível de significância adotado neste estudo foi de 0,05 (5%).
Estudo foi submetido à análise do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), com parecer de aprovação de no 4.062.744, CAAE: 31493920.8.0000.0021.
RESULTADOS
A caracterização da amostra do estudo, composta por 259 profissionais da APS, pode ser verificada na Tabela 1.
No que corresponde à disponibilidade de recursos materiais e recursos humanos pela gestão municipal, embora a maioria dos participantes, 140 (54,1%), tenha relatado ser os recursos materiais disponibilizados para atendimento durante o período inicial de pandemia suficientes, tanto quantitativamente como qualitativamente, encontramos um percentual expressivo que considerou em quantidade adequada mas de qualidade questionável 60 (23,2%), 41 ( 15,8%) que respondeu que os materiais são insuficientes tanto quantitativamente como qualitativamente e 18 (6,9%) que afirmou ser em quantidade insuficiente mas de qualidade.
Em relação aos recursos humanos, 135 profissionais (52,1%) consideram ser suficientes quanti e qualitativamente para a atuação durante o período inicial de pandemia, 46 (17,8%) em quantidade insuficiente, mas qualificados para a atuação, 42 (16,2%) em quantidade suficiente, mas não qualificados para a atuação e 36 (13,9%) consideraram insuficientes quanti e qualitativamente para a atuação durante a pandemia.
Tabela 1 Caracterização dos profissionais da APS atuantes na APS, estados de Mato Grosso do Sul (MS) e São Paulo (SP), Brasil, 2021 (n=259).

Quanto à estrutura física, 104 (40,2%) respondentes consideraram como adequada para o atendimento durante o período de pandemia, 91 (35,1%) classificaram como parcialmente adequada para o atendimento durante o período de pandemia, 39 (15,1%) como pouco adequada e 25 (9,7%) como inadequada (Tabela 2).
Analisando a logística relacionada ao apoio recebido da gestão, embora a maioria dos profissionais, 130 (50,2%), tenham relatado ter recebido apoio adequado para o atendimento durante o período de pandemia, identificamos um número considerável que respondeu ser inadequado, parcialmente adequado e pouco adequado, representando 129 (40,8%) dos profissionais participantes.
Em relação à logística relacionada ao transporte, 122 (47,1%) profissionais consideraram ser adequado para o atendimento durante o período de pandemia, porém se somarmos os profissionais que responderam considerar inadequados, parcialmente inadequados e pouco adequado, observamos ser a maioria, 137 (52,9%), sendo este resultado semelhante nos dois estados SP e MS. Entre a maioria dos profissionais que consideraram adequado, 10 (71,4%) atuam na gestão da APS.
Quanto às associações, no que tange às percepções dos profissionais quanto à disponibilidade de recursos materiais e recursos humanos pela gestão municipal tanto quanti e qualitativamente, não houve diferença significativa entre os estados de SP e MS.
Houve diferença significativa quando analisamos a infraestrutura relacionada ao estado de atuação dos profissionais participantes (p= 0,0440), sendo que observamos 85 (45,0%) profissionais do SP consideram a infraestrutura adequada, enquanto no Estado de MS este percentual é de 17 (26,2%) (Tabela 2).
Quanto a logística relacionada ao apoio recebido da gestão, a situação é semelhante nos dois estados SP e MS. Porém, no que se relaciona à logística de organização de fluxo para o atendimento o estudo mostra que existe uma percepção diferente entre profissionais que atuam na gestão de profissionais que atuam na assistência, sendo que para profissionais de Gestão da APS, 11 (78,6%) consideram como adequado para o atendimento durante o período de pandemia enquanto que para profissionais que atuam nas UBS ou serviços de atenção domiciliar um percentual considerável (52%) considera parcialmente adequada, pouco adequada ou inadequada (p= 0,0365) (Tabela 3).
Tabela 2 Infraestrutura das Unidades de atendimento segundo o estado de atuação, estados de Mato Grosso do Sul (MS) e São Paulo (SP), Brasil, 2021 (n=259).

DISCUSSÃO
O estudo possibilitou analisar a associação entre variáveis relacionadas a gestão de serviços da APS e estado e local de atuação dos profissionais no início da pandemia da COVID-19.
Embora a maioria dos profissionais participantes (54,1%) tenham respondido que os recursos ofertados são suficientes tanto quantitativamente quanto qualitativamente, houve um percentual considerável de profissionais (23,2%) que considerou a qualidade questionável, um 15,8% que respondeu que os materiais são insuficientes tanto quantitativamente como qualitativamente e 6,9% que afirmou ser em quantidade insuficiente, mas de qualidade.
No que tange a disponibilidade e organização de recursos materiais no combate à pandemia, sabe-se14 que em situações de crises humanitárias, como as pandemias, há uma ameaça ao equilíbrio dos sistemas de saúde devido ao grande número de pessoas acometidas pela doença, resultando em uma grande demanda, podendo impactar diretamente no quantitativo de recursos materiais. Quanto à quantidade e qualidade dos recursos, esses dados são coincidentes com alguns estudos realizados na Europa que apontam, por exemplo, que os Equipamentos de Proteção Individual (EPI) foram direcionados aos hospitais deixando os trabalhadores da APS desprovidos desses equipamentos ou supridos de equipamentos com qualidade inferior14,15.
É certo que o planejamento de estratégias a serem adotadas pela gestão municipal impactam na alocação dos recursos. Um documento produzido pela OMS16, que propõe diretrizes acerca da APS na pandemia de COVID-19, reflete além do papel desta esfera da atenção à saúde, sobre alocação de recursos durante a pandemia, a programação antecipada, a reorganização dos serviços, o estabelecimento de protocolos, integração entre os serviços de APS e serviços de internação e de urgência/emergência, podem diminuir o desperdício de recursos escassos, tornando-os suficientes para o enfrentamento da crise16.
No que se refere aos recursos humanos, os resultados mostram uma predominância de profissionais que consideram estes suficientes quantitativamente e qualitativamente (52,1%). No entanto, é significativo o número de profissionais que responderam ser insuficiente(47,9%). Devido a contaminação de profissionais pelo vírus, estes ficaram impossibilitados de exercer suas atividades laborais, além de muitos terem perdido suas vidas; outros presenciando tantas mortes, e acometidos de sobrecarga de trabalho foram afastados de suas atividades devido ao adoecimento mental. Devido a esses fatos, houve momentos de escassez deste recurso tão importante ao enfrentamento da pandemia17,18. É fato que a gestão de pessoas é sem dúvida alguma um grande desafio a ser enfrentado durante o período de pandemia.
No período inicial da pandemia por COVID-19, os municípios brasileiros em sua maioria organizaram serviços específicos para atendimento dos casos suspeitos de síndrome gripal, semelhante ao que ocorreu na cidade do Cabo, na África do Sul19, contribuindo desta forma para que os profissionais não sentissem a falta de recursos humanos.
No tópico relacionado a infraestrutura do serviço, houve uma discordância entre os profissionais dos dois estados, sendo que no estado de SP, 45,% deles consideram a estrutura adequada para o atendimento durante o período da pandemia; enquanto no estado de MS, 73,84% consideraram a infraestrutura parcialmente adequada, pouco adequada ou inadequada para o atendimento. Engstrom et al.20 descreve que as unidades devem ser organizadas de forma a se tornarem "ambientes seguros" aos profissionais, que devem organizar os atendimentos a pessoas com sintomas respiratórios preferencialmente por teleatendimento. Reforça ainda a importância da criação de fluxos evitando aglomerações e o contato de usuários com sintomas de outros usuários, devendo ser criado espaços específicos para acolhimento, espera e triagem espaçosos que possibilitem o distanciamento de pelo menos dois metros entre as pessoas. Sugere a utilização de tendas fora da UBS. Espaço adequado para atendimento de casos moderados a graves deve ser pensado, onde será mantido o paciente até sua estabilização. Este espaço deve prever ventilação adequada.
Estudos de revisão realizados na China e Reino Unido21,22 confirmaram que a exposição a pequenas partículas e gotículas maiores e/ou contato direto com pessoas contaminadas ou superfícies contaminadas leva a infecção pelo SARS-Cov-2, sendo o tempo de exposição ao vírus um fator importante para a contaminação. Reforça os benefícios dos EPIs e justifica a importância da ventilação de ambientes e uso de sistemas que promovam a circulação do ar, sendo as medidas de controle da superlotação de ambientes relevantes. Além da questão da ventilação, estudos21,22 mostram que é importante a exposição à luz solar pois estas inativam o vírus em poucos minutos.
Durante o período da pandemia, na maioria dos países, a gestão se voltou para os serviços de atenção secundária e terciária, devido a estes englobarem o cuidado dos pacientes acometidos pelo COVID-19 de maior complexidade, desta forma não tendo um olhar atento à APS23. Esta afirmativa, pode justificar as considerações acerca do apoio da gestão expressas nos resultados da pesquisa, pois embora a maioria dos profissionais ter relatado ter recebido apoio adequado para o atendimento durante a pandemia (50,2%) foi identificado no estudo um número relativo significativo de profissionais (40,8%) que consideraram ser inadequado, parcialmente adequado e pouco adequado. É importante ressaltarmos, a importância da APS como porta de entrada dos pacientes, monitoramento dos casos positivos e seu papel educativo na pandemia, pois a prevenção ainda é o melhor caminho para a diminuição dos casos24.
No que tange a logística de organização de fluxo para o atendimento, observamos no estudo uma associação significativa (p<0,05) quando comparado com o local de atendimento dos profissionais participantes. A percepção dos profissionais de Gestão é diferente dos profissionais que estão na assistência, sendo que profissionais da gestão da APS (78,6%) consideram como adequado para o atendimento durante o período de pandemia enquanto para profissionais que atuam nas Unidades básicas de saúde e Serviços de atenção domiciliar, 52% consideram parcialmente adequada, pouco adequada ou inadequada. Este fato relaciona-se ao conhecimento do Protocolo de Manejo Clínico para a Atenção Primária instituído pelo Ministério da Saúde. Embora tenha sido implementado visando padronizar o atendimento aos sintomáticos respiratórios à todas categorias profissionais envolvidas no atendimento25, estudos mostram que houve precariedade de capacitações de profissionais quanto ao mesmo, especialmente aos profissionais ACS, auxiliares e técnicos26,27, fato que justifica o resultado da pesquisa onde profissionais da gestão consideraram a organização de fluxo para o atendimento satisfatória em detrimento aos profissionais das Unidades de atendimento. Há também que se destacar, os casos em que a gestão não tem o conhecimento dos problemas gerados nas unidades relacionados ao fluxo de atendimento, em que as necessidades dos profissionais de saúde relacionados ao cuidar colidem com as necessidades imediatistas dos pacientes que se atém a experiência individual da doença; estas necessidades quando não atendidas a tempo e contento, acabam imputando à gestão culpa pela morosidade da resolução destes problemas, o que corrobora a avaliação dos profissionais da assistência na avaliação deste item28.
Outro dado relevante mostrado pela pesquisa foi relacionado à logística de transporte, identificando uma percepção e análise diferente entre os profissionais que atuam na gestão quando comparado aos profissionais que atuam na assistência. Dentre os profissionais da assistência, a maioria (52,9%) considerou inadequados, parcialmente inadequados e pouco adequados, enquanto profissionais que atuam na gestão, 71,4% dos participantes consideram a logística de transporte adequada.
Diante de uma situação pandêmica, a logística de transporte da maioria das cidades brasileiras foi afetada, visto que houve um aumento significativo de demanda e os cuidados, para evitar a disseminação da doença, foram intensificados. O transporte interinstitucional de pacientes suspeitos ou confirmados deve ser feito somente se extremamente necessário e seguindo as recomendações de biossegurança descritas no manual da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)29. Para o enfrentamento de uma pandemia é essencial que as instâncias de atenção à saúde estejam integradas e que sejam adotados políticas para garantir recursos materiais e humanos, oferecendo assim condições adequadas para o trabalho dos profissionais30.
O estudo de delineamento transversal apresenta limitações em relação ao estabelecimento de causalidade. Este estudo não possui validade externa, por não permitir generalizar os resultados para a população alvo, devido ao uso do método de bola de neve, tamanho amostral delimitado pelo tempo de coleta de dados, o que limita a generalização dos achados para a população, frente à sua natureza não probabilística e não aleatória. Além disso, a aplicação do questionário de modo online, pode apresentar vieses como: a má interpretação das questões pela falta de um entrevistador presente; não alcançar uma amostra amplamente diversificada, pois não permite que os participantes que tem dificuldades com ferramentas online tenham acesso; e por fim, práticas enganosas por parte dos participantes, respondendo erroneamente, ou propositalmente e/ou repetidamente para impor sua linha de pensamento ante às questões31. Apesar das limitações reportadas, foi possível verificar que a gestão local da APS, deve repensar as estratégias de aprimoramento deste serviço em períodos epidêmicos, vinculando-as às ofertas disponíveis, infraestrutura e organização do processo de trabalho.
CONCLUSÃO
Conclui-se com o presente estudo que os profissionais da APS percebem a gestão municipal da pandemia, em diferentes aspectos, como inadequada. Além disso, um grande percentual de profissionais considerou os recursos tanto materiais como humanos insuficientes ou pouco suficientes quanti e qualitativamente. A percepção quanto a logística de fluxos e transporte foi diferente entre profissionais que atuam na assistência e na gestão.
A APS é a esfera de cuidado mais próxima dos pacientes e suas famílias, e a quem os pacientes buscam primeiro quando acometidos das mais diversas doenças. No caso da COVID-19, apesar de suas consequências e agravamentos não é diferente, os serviços de APS são considerados "porta de entrada" e primeiro acesso ao sistema de saúde devendo estar qualificado para este atendimento. Estas características tão importantes, tanto para o cuidado quanto para a educação em saúde, primordial no manejo da prevenção e da assistência nos casos da COVID-19, não podem passar despercebidas pela gestão nas três esferas de governo, especialmente pela gestão municipal.
Porquanto, se faz necessário que sejam implementadas políticas públicas e de gestão que valorizem os serviços de APS e seus profissionais, garantindo condições adequadas de trabalho, o que refletirá em um melhor atendimento e satisfação para os usuários do SUS.