INTRODUÇÃO
A violência contra o idoso é tanto um óbice ao desenvolvimento da saúde pública, quanto um problema progressivo para o campo1. Evidências demonstram que os tipos de violência variam desde psicológicos a agressões físicas2. Ao tempo que indicador de progresso nacional tem se ampliado, como o aumento na expectativa de vida e da população idosa no Brasil nos últimos anos3,4, esses números acompanham o acréscimo na violência contra esse grupo social.
O impacto da violência contra o idoso no setor da saúde pode ser expresso em números, conforme dados de 2008 da Organização Mundial da Saúde-OMS5. Um total de 20.303 idosos morreu por causas externas (acidentes e violência), significando 3,1% das mortes dessas pessoas no Brasil. Nesse mesmo ano, 65,4% dos mortos por essas causas precisaram de atendimento e faleceram quando ainda estavam sendo atendidos em uma unidade de saúde6. Em 2009, ano seguinte, as agressões totalizaram 1.929 óbitos, de um total de 21.453 fatalidades por causas externas7.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) conceitua maus-tratos à pessoa idosa como ato único ou repetido, ou ainda, como ausência de ação apropriada que ocasione dano, sofrimento ou angústia, e que ocorra dentro de um relacionamento de confiança. A violência e a violação dos direitos humanos são consideradas um fenómeno biopsicossocial8. O Ministério da Saúde Brasileiro classifica a violência contra a pessoa idosa em física, sexual, psicológica, económica, institucional, abandono/negligência e autonegligência9. Ademais, a violência contra o idoso pode ser objetivada de diferentes formas: danos físicos, mentais e morais10.
No Brasil, as violências contra os idosos também se expressam sob a forma de discriminação, considerando idosos como "descartáveis e um peso social"11. A situação é decorrente do preconceito cultural que ainda persiste contra o idoso no Brasil12, principalmente em contextos sociais e de saúde, tornando necessária a capacitação de profissionais na prevenção, identificação e tratamento de maus-tratos em idosos, uma vez que os serviços de saúde em geral, e mais particularmente os setores de emergência e os ambulatórios, constituem uma das principais portas de entrada das vítimas de maus-tratos13.
A preocupação com a formação dos profissionais de enfermagem emerge desta necessidade latente de capacitação e do vínculo deste ao atendimento, direto às pessoas idosas vítimas de violência que procuram serviços de saúde. Sua inserção na equipe multiprofissional da Estratégia Saúde da Família-ESF, no desempenho de atividades de promoção, prevenção, diagnóstico e tratamento, por meio de buscas ativas em visitas domiciliares, atendimentos em hospitais, postos de saúde, ambulatórios e home care, que oportuniza a convivência próxima com o público em questão. Por este convívio e contato, os enfermeiros podem atuar na notificação e percepção do caso de violência, situações que podem auxiliar na descontinuidade dos atos de violência10,11. Contudo, o gap entre formação e atuação profissional pode apresentar óbices na integração entre aquilo que é aprendido na graduação e a prestação de serviços14. Estas dificuldades estão relacionadas, em suma, com competências e habilidade técnica e a distância prática entre a formação acadêmica e a realidade do profissional14.
O estudo teve como objetivo analisar elementos da formação do enfermeiro que implicam na atividade profissional quanto à prevenção da violência contra o idoso.
MATERIAL E MÉTODO
Pesquisa de abordagem qualitativa fundamentada no Discurso do Sujeito Coletivo15 realizada com 24 enfermeiros de equipes de saúde da família de um município do interior do Maranhão.
Foram incluídos profissionais que atuavam em alguma equipe da Estratégia da Saúde da Família por, no mínimo, um ano e com atuação exclusiva na zona urbana da cidade, convidados a participar do estudo. A inclusão dos participantes foi concluída por critérios de saturação teórico-empírica, quando as respostas não traziam mais contribuições significantes ou estas eram mínimas16.
A coleta dos dados ocorreu durante o ano de 2015, com entrevistas individuais guiadas por um roteiro semiestruturado incluindo tópicos sobre o cuidado na prevenção da violência contra o idoso. A entrevista foi realizada em sala reservada com duração média de 40 minutos.
As entrevistas foram transcritas na integra e montou-se um corpus textual que compreendeu o texto do to tal de entrevistas. Para o processamento dos dados utilizou-se o software IRAMUTEQ(Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Texte set et de Questionnaires) que possibilita a organização do corpus textual e diferentes formas de análises estatísticas sobre este17. Para a análise do texto, seguiu-se a Classificação Hierárquica Descendente.
O uso de softwares em análise de dados qualitativos tem sido crescente por visar redução do trabalho operacional com a organização dos dados e ampliar as possibilidades do pesquisador quanto sua análise18,19. O texto das entrevistas foi transcrito para a construção do corpus e organizado em um único arquivo de texto, conforme orientações do tutorial do IRAMUTEQ19. O corpus foi formado pelo conjunto de textos a ser analisado. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Centro Universitário UNINOVAFAPI, sob parecer n° 879.609.
RESULTADOS
O IRAMUTEQ reconheceu a separação do corpus em 101 unidades de texto elementares (UCE) divididas em 121 segmentos de texto, com 83,47% de aproveitamento do material.
O material analisado resultou em seis classes. Classe 1-Processo de formação: necessidade de atualização constante, Classe 2-Dificuldade de identificação dos casos de violência contra o idoso na ESF, Classe 3-Prevenção da violência contra idosos na ESF, Classe 4-Reconhecimento de casos de violência contra idosos na ESF, Classe 5-Identificação precoce de casos de violência e potenciais fatores de risco, Classe 6-Visita domiciliar ao idoso como estratégia de promoção da saúde e prevenção da violência, conforme se observa na Figura 1.
A relação entre as classes demonstra que a formação do enfermeiro possui reflexos nas suas atitudes e percepções em relação à prevenção da violência contra a pessoa idosa atendida na Estratégia Saúde da Família. Esta formação é "complementada" por cursos e programas de capacitação profissional, gerando reflexos no trabalho em equipe.
Classe 1: Processo de formação: necessidade de atualização constante
Os enfermeiros elencam déficit no processo de formação pela ausência de elementos que enfoquem a violência contra a pessoa idosa. Este viés de formação acarreta falta de habilidade para lidar com a problemática no quotidiano dos serviços da estratégia saúde da família, observa-se:
Formação não adequada e não foca na violência ao idoso, falta de capacitação dos profissionais e a própria dificuldade dos profissionais em lidar com esses tipos de situação. Ent. 02
Faz-se necessário intervir com competência e habilidade e os enfermeiros apresentam lacunas em seu processo de formação. Além disso, em aspectos gerenciais, o planejamento das equipes é afetado por falta de proximidade com o tema:
A temática é trabalhada diante da necessidade ou sugestão feita pela equipe não para desenvolver ações e atividades abordando essa questão, acho que seria de suma relevância a realização de capacitação aos profissionais de saúde com abrangência em todos os setores... outra sugestão interessante seria a criação das semanas de combate a esse tipo de violência assim poderíamos tratar de maneira incisiva dentro do município. Ent. 05
O trabalho de toda a equipe é prejudicado, o discurso dos enfermeiros desvela a adoção de medidas que são delegadas para outros integrantes da equipe de saúde. Tal delegação é realizada de forma arbitrária uma vez que o profissional enfermeiro não tem capacitação para lidar com os possíveis casos que possam surgir no serviço:
Não tenho capacitação. O que é feito para a prevenção são palestras e busca ativa com o apoio dos ACS. Ent. 17
Nesta classe, observa-se que o trabalho em equipe tem prejuízos na qualidade do funcionamento em decorrência da formação do enfermeiro que não contempla de forma satisfatória a complexidade da violência contra o idoso.
Classe 2: Dificuldade de identificação dos casos de violência contra o idoso na ESF
Um dos passos iniciais para a gestão de casos de violência contra o idoso na ESF é o reconhecimento e identificação do caso. Um processo de formação bem conduzido e que aborde o tema com profundidade prepara profissionais capazes de identificar e conduzir um caso de violência.
Uma das principais dificuldades é identificar a violência, uma vez que a maioria das vezes pessoas só considera violência a física, mas é bem comum a exploração financeira e do trabalho. Ent. 08
Reconhecer as peculiaridades de atos de vio- que possibilite o enfermeiro ter raciocínio crítico e lência praticados contra um idoso requer uma reflexivo sobre os fatos que se apresentam em seu formação fundamentada em aporte teórico sólido cotidiano de trabalho junto à comunidade.

Figura 1 Dendograma Formação do enfermeiro na prevenção da violência contra a pessoa idosa na estratégia saúde da família.
Classe 3: Prevenção da violência contra idosos na ESF
A prevenção da violência deve ser trabalhada junto à comunidade na desmistificação do próprio processo de envelhecimento, devendo ser trabalhada a compreensão do idoso sobre si, sobre seu papel junto à família e sua função social enquanto sujeito inserido em um contexto.
Alguns dos aspectos que interferem na prestação da assistência a pessoa idosa vitima de violência são por parte do idoso: a dependência em todas as suas formas como física mental afetiva socioeconómica medo da vitima de possíveis represálias. Sentimento de culpa, a pessoa idosa pode pensar que é sua a culpa por estar sofrendo maus tratos, pois não foi um bom pai ou uma boa mãe e agora está colhendo os resultados. Ent. 07
O sentimento de culpa pode interferir na identificação dos casos, mas o enfermeiro deve estar com suporte teórico e prático suficiente para a condução dos casos, especialmente no desenvolvimento de intervenções capazes de promover prevenção comunitária abrangente que envolva públicos de diferentes idades.
Classe 4: Reconhecimento de casos de violência contra idosos na ESF
Nesta classe é relatada a dificuldade de identificação dos casos, especialmente pela omissão do idoso e por medo do desfecho. Entretanto, a detecção de fatores de risco é uma iniciativa para prevenção, detecção precoce e promoção de condutas apropriadas para evitar esse tipo de violência. Além disso, o vínculo entre profissional de saúde e usuário do serviço é um elemento fundamental para gerar confiança capaz de construir um caminho de confiança no serviço e no profissional de saúde.
Felizmente até o presente momento ainda não vivenciei. Um obstáculo que muitas vezes pode acontecer é a omissão. Muitos idosos são violentados até mesmo por seus familiares, mas possuem receio de procurar ajuda e confiança a quem procurar. Ent. 12
Classe 5: Identificação precoce de casos de violência e potenciais fatores de risco
A identificação de fatores de risco pode ser uma estratégia adotada pelas equipes de saúde para a redução dos casos de violência. Considerando que a maior parte dos casos ocorre no ambiente familiar, os participantes da pesquisa informaram que com base em sua atuação nas ESF, os cuidadores não estão preparados para cuidar de uma pessoa idosa, como se pode observar:
O convívio familiar estressante e cuidadores despreparados ou sobrecarregados tendem a agravar a situação do idoso, por acompanhar rigorosamente, através de visitas domiciliares, observar qualquer sinal de irregularidade como violência psicológica, física, violência económica, financeira epatrimonial. Ent. 04
Diante de ser muito especifico à atenção a este grupo pude observar e vivenciar que a graduação não é abordado sobre o tema de forma mais ampla.Ent. 24
Dada a complexidade do tema, a prevenção dos casos de violência vai além de práticas usuais como palestras sobre o tema, evidencia-se a necessidade de uma abordagem mais ampla, incluindo a capacitação de cuidadores para o cuidado adequado ao idoso.
Classe 6: Visita domiciliar ao idoso como estratégia de promoção da saúde e prevenção da violência
A visita domiciliar é apresentada pelos participantes como uma importante ferramenta de promoção da saúde e prevenção da violência contra o idoso. São apresentados os cuidados na visita domiciliar:
Faço palestras e orientação aos cuidadores, um casal de idosos que moravam sozinhos em uma casa, praticamente sem nada, passava fome porque a filha era drogada esó ia visita-los no dia da aposentadoria... a maior dificuldade é acionar as pessoas certas e não ter o retorno de resolução do caso. Ent. 06
O discurso dos enfermeiros participantes desta pesquisa elucida uma questão de extrema relevância para a enfermagem atual: o processo de formação do enfermeiro voltado para problemas presentes no cotidiano de comunidades envolvendo um grupo cada vez maior, os idosos. A violência contra a pessoa idosa deve ser enfrentada por profissionais com suporte teórico e prático que possibilite o manejo adequado dos casos, fundamentado em evidências científicas.
DISCUSSÃO
Há necessidade de capacitação dos profissionais de saúde para a identificação e intervenção com competência nos casos de violência sofrida por idosos. Entende-se que o processo deve ser iniciado na graduação e continuar durante a atuação profissional nos serviços de saúde por meio de cursos de atualização e capacitação. Em suma, há uma lacuna entre a formação desenvolvida na graduação e a prática do profissional14.
No contato direto com os idosos que usam os serviços de saúde, a investigação e identificação dos casos de violência e maus-tratos cabem ao profissional de saúde, bem como a ação coordenada com outros profissionais para traçarem intervenções capazes de gerar efeitos positivos nos indicadores de violência5,10,12.
A tarefa dos profissionais junto às vitimas de maus tratos é obstaculada porque, além de acolher e detectar os casos, é preciso acompanhar as vítimas, sendo necessária uma formação sólida. A falta de aporte teórico e habilidade prática para lidar com situações de violência estão relacionas ao sentimento de impotência, que surge quando o profissional se depara com casos e não se sente suficientemente capacitado para abordá-lo. O medo da exposição e de represálias por parte do agressor é latente20.
Estudos têm reconhecido que os profissionais de saúde são considerados essenciais na identificação de indivíduos e grupos populacionais de risco para a violência, pela posição que ocupam na prestação de serviços à população, e para a promoção e prevenção21. A crescente necessidade de atendimento às vítimas de violência que chegam aos serviços de saúde evidencia precariedade na estrutura do sistema de saúde e dificuldades de seus profissionais no atendimento e acompanhamento dessas pessoas, contribuindo para a reincidência e agravamento de casos3,4. Muitos destes problemas estão relacionados ao processo de formação e capacitação dos membros das equipes de saúde21.
Evidências internacionais indicam a complexidade dos casos que podem ser registrados desde o ambiente familiar doméstico a casas de repouso e contribuem para a fragilidade do envelhecimento. Além disso, a violência contra o idoso apresenta viés de gênero, um estudo latino-americano mostrou evidências de que as idosas são mais atingidas22-25.
A capacitação dos recursos humanos e a orientação dos cuidadores/familiares certificando a qualidade da atenção oferecida; garante a obrigação da notificação dos casos suspeitos ou confirmados de violência aos órgãos públicos e as ações de prevenção desses agravos6. Contudo, os índices de agressões e demais tipos de violência externa continuam aumentando1, bem como a não consideração de outros agravos, que não o tipo físico e visualmente mais fácil de ser identificado9.
A maior parte dos estudos que abordam a questão da capacitação de profissionais da saúde em relação à violência indica a necessidade de se desenvolver estratégias para prepará-los melhor sobre o tema, ainda indicando a formação como incompleta ou carente em alguns aspectos14. Além da necessidade de investir na conscientização dos profissionais sobre a violência e de recursos disponíveis para a sua abordagem, indicam também a necessidade de introduzir formalmente uma disciplina nos currículos e desenvolver programas de capacitação permanente das equipes de saúde21.
Além de a violência contra os idosos e suas manifestações serem difíceis de ser reconhecidas, esse problema não tem se apresentado como uma prática de relevância social e acadêmica. Neste momento histórico, em que a quantidade de idosos tem crescido, torna-se um tema obrigatório da pauta de questões sociais1.
Os serviços de atenção primária são estratégicos para lidar com casos de violência familiar, funcionando como a porta de entrada dos serviços públicos de saúde. A literatura da última década informa que os profissionais já vêm incorporando em suas rotinas as determinações de políticas públicas direcionadas ao enfrentamento da violência familiar21.
CONCLUSÃO
Neste estudo, evidenciou-se que, dentre os elementos formativos ou sua ausência, não é habitual que os profissionais recebam treinamentos ou capacitações para atuar na prevenção da violência contra a pessoa idosa na Estratégia Saúde da Família, com principal dificuldade a identificação destas agressões ou abusos. A proximidade da relação social entre idosos e agressores contribui para esta dificuldade e, muitas vezes, aqueles que sofrem não denunciam os maus-tratos a que estão sujeitos.
Como a unidade básica de saúde é porta de entrada do serviço de saúde para a população brasileira em geral, torna-se necessário a valorização de estratégias de educação permanente e continuada, visando suprir déficits de formação. Neste caso específico, os múltiplos aspectos que compõem o tema violência.
As limitações do estudo dizem respeito ao lócus da pesquisa, por enfocar a realidade de um município no interior do país, o que, por outro lado, pode auxiliar a compreensão da questão em outras localidades que, por estarem em condições similares, podem possuir características também análogas. Pesquisas futuras são recomendadas e podem explorar contextos de grandes centros urbanos brasileiros a fim de contribuir com mais evidências. Desta forma, comparações podem ser feitas sobre o mesmo fenómeno em realidades distintas.